Conversa perdida
Eu não saberia dizer se sou muitas ou tantas. Duas é o mínimo que sou. Uma delas compreende, ainda que precariamente, as normas, as regras sociais. A outra é a poeta e com esta eu não posso. Indomável e livre por natureza, mas, mesmo assim, recebendo a influência da primeira, pois enfim é nela que habita e usa para se manifestar. Noto na poeta uma insatisfação por esta dependência da criatura física, amordaçada no convívio social. Noto ainda uma espécie de humor que se altera, tanto para um estado de alegria quanto para uma angústia produtora de poesia. Até quando as duas conviverão eu não sei, sequer imagino. Mas imagino o quanto o ser finito sofrerá por uma separação. E podem se separar, pois a poeta de repente mudará de ideia e migrará para regiões desconhecidas como desconhecida é sua origem. Talvez, penso agora, a poeta já esteja farta da pessoa comum e busque “novas artes, novo engenho”. Entretanto, esta que escreve agora teme essa partida. Não apenas teme, mas se apavora. O amor pela poeta é grande demais e totalmente impossível de ser descartado, dispensado, esquecido. Assim, fico refletindo e até me encho de ciúmes quando prevejo esse afastamento. A vida sem poesia é puro tédio. Tomara que ela não me leia, pois, voluntariosa que é e inovadora, tomaria de propósito me causar sofrimento, dor. Por isto escrevo em prosa nada poética. Por isto fico nestas linhas tergiversando. Meu intuito é suborná-la, mesmo sabendo que tal coisa é inteiramente impossível. A poesia tem uma personalidade mais forte que os oceanos e acima deles se posta. A poesia é a filha-dor-de-cabeça de Deus. Também é a ovelha desgarrada pela qual haverá mais alegria no Paraíso por sua salvação. Mas, a poesia não é e nem será do rebanho. Em sua essência ela é infinitamente maior que qualquer rebanho. A poesia conhece o gosto da matéria e do espírito, o tirocínio e a incapacidade. Conhece a transcendência, o enlevo, a guerra e a paz. Por ser conhecedora é sempre solta, presa fosse não seria poesia. Nem ao verso se dá, nem à estrofe, sequer ao poema. Verso, estrofes e poemas são fotógrafos desclassificados da Poesia, profissionais apaixonados e incapazes. Lá vai a Poesia “sem lenço e sem documento”, lá vai ela ao vento, vencendo as nuvens, correndo pelas colinas, mergulhando nas profundezas dos mares e sobre eles bailando. Lá se vai a Poesia sem malas, sem vestidos, nua em sua plenitude. Volta aqui, minha amada, volta. E se digo isto, aí é que jamais virá. E eu não sei o que fazer da criatura física sem aquela que me visitou.
*** teoricamente este texto não é uma crônica, mas, antes de sair por aí, a Poesia me disse: DIGA QUE É UMA CRÔNICA.