SUCURSAL DO INFERNO

O objetivo era fazer a segunda via da carteira de identidade de minha esposa, e sabíamos que para receber o documento no mesmo dia era necessário o deslocamento até o bairro da Ribeira, local decadente, triste, melancólico até, e praticamente abandonado pelo Poder Público. Avisaram-nos que o ITEP funcionava das oito horas da manhã às duas da tarde, deixando claro para irmos o quanto antes porque havia indicação de greve para os servidores da entidade e esta poderia ocorrer logo no dia seguinte. Diante de tal argumento, lá fomos nós nos embrenhando pelo trânsito um tanto louco do horário, optando por pegar a Via Costeira para fugir dos engarrafamentos homéricos usuais no momento em que fomos para a empreitada.

O ITEP, além de estar localizado na Ribeira, ainda por cima situa-se numa ruazinha estreita por onde circulam ao mesmo tempo as pessoas, os vendedores ambulantes e os veículos, fora os camelôs vendendo seus bagulhos de todo tipo sobre a diminuta calçada, em meio aos muitos sacos de lixo fedorento e às filas imensas de quantos vão ao local para resolver seus problemas. A ruazinha bendita já estava bagunçada e tumultuada assim quando chegamos. Para ir adiantando e não perder tempo, Ana desceu do carro e correu para conseguir um lugar na fila enquanto eu fui procurar um espaço em derredor para estacionar. É que, durante a semana, o bairro da Ribeira tem uma intensa movimentação por diversas razões, algumas delas são o Banco do Brasil, a Receita Federal, o famigerado ITEP, entre outros tantos que funcionam de segunda a sexta-feira. Depois de rodar à procura, finalmente deixei o carro no único local distante disponível, pelo menos longe dos indefectíveis flanelinhas.

Dos dois lados duma portinha de vidro estreita entreaberta, guardada por um senhor já entrado em anos usando farda de militar ou vigia, não sei, havia filas enormes, muitos sacos de lixo exalando terrível odor putrefato, crianças chorando, um vendedor de cocos oferecendo aos gritos seu produto, gente desconcertada conversando e se maldizendo, pessoas aglomeradas na entrada procurando dar um jeito de furar as filas, gente simples, muita gente simples, somente gente do povo suportando o desconforto da espera triste, desanimada, torturante, indiferente. No meio de tudo isso, lá estava também minha amada esperando a vez de ser atendida. Fui ao seu encontro e fui recebido por uma desagradável surpresa sinistra, e só percebi isso ao vê-la com a mão sobre o nariz num gesto que era seguido pelos demais circunstantes.

Um odor ainda mais podre, nauseante mesmo, penetrava em nossos olfatos com inesperada profundidade, denso, arrogante, brutal, insuportável. Logo soubemos o por quê: no mesmo prédio do ITEP, ou em algum anexo das proximidades - não tive condições de saber ao certo, pois a podridão não me permitiu procurar - funciona a sala de necropsia do órgão estatal, onde uma quantidade de cadávers não conhecida por nós é depositada e necropsiada, para horror de todos que necessitam permanecer por alguma circunstância, como nós, e trabalhar ali perto - inclusive restaurantes popularíssimos, oficinas etc - Enquanto a fila, de forma morosa, irritantemente lenta, andava sua jornada de horror.

Mas, não foi apenas esses inesperados detalhes dantescos a nos apavorar. Lá pelas tantas, repentinamente uma senhora funcionária do ITEP chegou e começou a passar orientações em voz alta para todos, assegurando que depois daquele interminável tempo na fila ainda teríamos o infortúnio de esperar mais duas horas lá dentro, se e quando conseguíssemos entrar, pensei eu. Ela era simpática e sorridente, mesmo ao falar do desconforto que todos passávamos ante o cheiro podre de cadáveres sendo necropsiados ou sabe lá mais o quê, o acúmulo de grandes sacos de lixo fedorentos aos nossos pés e a demora no atendimento. Não foi só isso. Depois que ela voltou ao trabalho, algo ainda mais surreal aconteceu: um camburão da polícia parou quase ao nosso lado, tão estreita é a rua, desceram vários policiais, inclusive femininas, que entraram no ITEP, e uns grandalhões que se dirigiram à traseira do veículo e de lá tiraram, algemado, um sujeito de baixa estatura usando bermuda, camisa já surrada e sandálias havaianas, também adentrando com ele, segurando-o por ambos os lados, por entre as filas e se embrenhando no caos do local entupido de gente.

A multidão nas filas sussurrava atônita, assustada, temerosa. E falavam entre si cheia de medo, se o marginal tentasse fugir e derrubasse quem estivesse à sua frente, e se algum sacasse sua arma e disparasse, e se...? Então subia com mais intensidade o mau cheiro dos cadáveres, algumas crianças e umas senhoras comiam salada vendida por um cara numa bicicleta, outros mastigavam pipoca de isopor, chupavam picolé, tomavam suco de origem duvidosa e esperavam. A fila rastejava, o tempo passava, a podridão aumentava, aqui e ali alguma criança chorava. O céu daquele dia ensolarado e esturricado, como sói acontecer por vezes, ameaçou chuva e ficou nublado por instante, mas o sol, Astro-rei que é, logo trouxe seu brilho intenso e muito mais calor sobre nós.

Finalmente, depois de muitas lamentações, das perturbações, da fedentina infernal, da sujeira da ruazinha onde o lixo reinava, chegou nossa vez de entrar. Foi pior, se isso ainda é possível após tanto sofrimento lá fora. Verdadeira multidão transbordava o ambiente, filas por todos os lados, um converseiro interminável, gritaria, caos. Uma mulher pequenina segurando o filhinho ainda bebê chamou minha atenção, pois ela circulava de um canto a outro em silêncio, a criança dormindo a sono solto, fazia gosto, a boquinha aberta, serena, tão longe em seu universo onírico. Vi os dois durante quase três horas circulando pela sala tumultuada, e em nenhum instante percebi raiva, rancor ou qualquer outro gesto de rebeldia em seu rosto por causa da situação por ela vivida, inclusive por todo esse tempo a criancinha não acordou de jeito nenhum, era um verdadeiro anjo de comportada, um cordeirinho dormindo o tempo todo.

Esperar lá fora, sob o sol, o calor, a podridão, o barulho dos carros passando e muitos outros desconfortos foi ruim, péssimo mesmo, mas no interior do ITEP a demora foi ainda maior, mais castigante, nervosa, barulhenta, caótica. Dezenas de cadeiras ocupadas situavam-se no centro, onde muitos, desolados, dormitavam, bocejavam, conversavam sem vontade ou rezavam para o tempo passar. Dois balcões em forma de L delimitavam o povão dos barnabés, aquele chateado, estes aborrecido, aqueles aguardando impaciente, estes trabalhando já cansados da rotina. A fila para pagar a taxa se tornava um tormento a cada minuto, com uns procurando, no jeitinho brasileiro, passar à frente de quem chegara primeiro, uma mulher descontrolada xingava o atendimento, muita gente se aglomerava no balcão onde as impressões digitais eram colocadas nas carteiras de identidade, um e outro funcionário berravam o nome dos felizardos chamados para a última etapa do sofrimento, isto é, entregar os documentos, assinar a identidade, sujar os dedos para deixar as impressões digitais, esperar um tempinho mais e, por fim, sair sorridente e vitorioso daquele caos antediluviano. Vi várias pessoas saírem segurando sua identidade como se fosse um verdadeiro troféu, um deles afirmou "esse é o momento mais feliz da minha vida", sabendo que graças a Deus havia terminado a jornada e se libertava do inferno.

Em determinado ponto de nossa angustiante espera, algo nos mortificou e indignou ainda mais, tudo para completar com chave de lama o dia. Acompanhado de uma loura estonteante muito bem vestida, que ganhou os olhares da multidão que esperava sua vez, entrou um senhor vestindo paletó, usando gravata, ar de superioridade, que, decidido, foi diretamente ao encontro de uma funcionária do ITEP e lhe disse algo. Correria geral, ela imediatamente embrenhou-se por alguma área mais interna da área onde trabalhava e desapareceu. O cara e a loura se meteram por entre o empurra-empurra de gente junto ao balcão das digitais e, calados, ela na frente dele, que a segurava pela cintura, sob os olhares curiosos de todos, e eis que, sem mais nem menos, imediatamente foram atendidos e se foram, a loura toda feliz levando na mão sua identidade nova. Enquanto os dois, satisfeitos por mostrar quem manda e quem obedece, fiquei pensando "isso, infelizmente, é a cara do Brasil, a cultura ditatorial de tempos idos que nunca acaba, o poder do dinheiro e da posição mandando mais do que a democracia." Quando perguntei a uma das funcionárias que, por acaso, passou perto de mim para ir almoçar, qual a razão do cara com a loura ter sido atendido passando à frente de quem havia chegado desde cedinho da manhã, ela me disse que a "ordem tinha vindo lá de cima." Afinal de contas, não é assim em nosso país terceiromundista? Quem pode contra um sujeito todo enfatiotado, acompanhado de uma loura estonteante pingando ouro, e ainda mais trazendo no bolso "uma ordem lá de cima!" ? É covardia e humilhação demais, prova da indigência cultural de uma Nação que só valoriza os altos cargos, as posições políticas e sociais em detrimento da grande maioria de seu povo. Senti asco e irresistível vontade de vomitar. Infelizmente o Brasil continua sendo o país de quem tem influência, poder e melhores condições sociais e da "ordem lá de cima" que determina prioridades e fura filas.

Gritos, impropérios, ódio, aquilo não poderia ter acontecido, foi um despautério, inconteste ultraje contra os presentes. Contudo estava feito e perfeito, o casal foi atendido em menos de dez minutos enquanto nós todos esperávamos há mais de quatro horas.

Somente por volta das duas horas da tarde Ana foi atendida, e o pior é que saímos de lá felizes por tudo ter terminado, por o inferno, enfim, acabar, por ficarmos longe daquele antro fétido onde se localiza o ITEP de Natal. Outro fato deveras pitoresco merece ser mencionado, foi no instante em que Ana finalmente esperaria somente mais um ou dois minutos para receber o documento que viera buscar. Uma senhora bem abaixo da linha de humildade, desdentada, sunguela mesmo, um tiquinho de nada no aspecto físico, se aproximou dela reclamando do péssimo atendimento, da demora e da fome que estava sentindo, pois havia saído do interior para Natal apenas para fazer sua carteira de identidade e tinha só o dinheiro da passagem para vir e voltar. Penalizada, antes mesmo que a mulher saísse de perto em sua ladainha famélica, Ana entregou-lhe um determinado valor para ela comprar o almoço tão-logo saísse dali. Quase sem acreditar, a mulher, coitada, tão faminta estava que derreteu-se em agradecimentos e se foi dando graças a Deus.

O inferno fétido e abandonado por quem de obrigação ficou para trás, nós fomos saindo apressados sem olhar para trás, a mão no nariz, jurando nunca mais por os pés naquela choça pulguenta e doentio.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 02/09/2012
Reeditado em 02/09/2012
Código do texto: T3861123
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