HAVIA UM MELRO

Crónicas da minha terra

Sorte daquele muro por ser feito de pedra e, esta ser talvez o elemento da natureza mais digno, menos corruptível, um quase eternidade, que resiste ao tempo na sua dureza imutável.

Do outro lado do rio, sobre pequena elevação, um telúrico outeiro, chamado Cabeço da Almoínha, assentava um muro da idade do mundo, feito de toscas pedras e coberto de musgos e de heras de muitas eras, onde certo melro preto e de bico amarelo costumava observar as quintarolas, ali ao seu redor, de onde sobressaiam algumas frondosas e velhas cerejeiras que costumavam carregar de deliciosas cerejas de um vermelho que transpirava de volúpia, uma verdadeira tentação, até para o mais santo dos melros.

Para o lado que corre o rio, a meio de um pequeno declive desse outeiro, a terra era muito magra, ressequida, e coberta em sua maior parte por rala vegetação rasteira, mas circundado no seu sopé por velhos carvalhos, amieiros, salgueiros, e outras plantas nativas, que saciavam sua sede da água rio. Dali dava para escutar o gorgolejar das águas cristalinas desse rio que nos meses de verão faziam as delícias da malta, miúdos e graúdos.

Pois, aquelas cerejas no mês de junho eram verdadeira perdição da malta miúda e, da passarada, em especial dos melros, grandes apreciadores desse delicioso manjar.

O dono da quintarola costumava recorrer a engenhosas taramelas ou tramelas para espantar os pássaros, que os havia em grande número naquele tempo. Constava essa engenhoca de uma hélice de madeira e de pequenas e esféricas maçanetas também de madeira presas por tiras de couro que ao serem impulsionadas pelo vento faziam grande estardalhaço ao baterem contra um semicilindro de latão que fazia parte da engenhoca. Quando ventava um pouco mais forte, o engenho afugentava a passarada com seu barulho impertinente. Mas não afastava os outros “melros”, a canalha miúda. Havia outro problema que costumava conspirar contra a dona dessas cerejas, era a escassez do vento, em boa parte dos dias, no tempo de verão. E, então, todos os melros da “paróquia” os de bico amarelo, e os de “cara lavada”, faziam a sua patuscada.

Pois aquele melro emérito cantador, papo a abarrotar de cerejas fazia daquele outeiro o seu púlpito, onde extravasava todo o seu lirismo, com seu betoviano canto, cujas melodias ecoavam por todo o vale o qual ampliava aqueles sons angelicais qual imensa concha acústica, para deleite de todos aqueles que tinham o privilégio de poder ouvi-lo.

... Havia um melro, um muro muito velho feito de eternidade, e, havia o fruto proibido. Havia o sonho embalado pelo vento, e não havia o tempo.

Havia um melro, um muro de pedra havia...

Eduardo de Almeida Farias
Enviado por Eduardo de Almeida Farias em 01/09/2012
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