SURDOS, MUDOS E DANÇARINAS

Faz muito tempo, mas essa lembrança nunca desbotou em meu coração; está nele como uma rosa acesa dentro de um cofre – uma crônica perdida, que hoje reescrevo:

Eu vinha no lotação, lá em Maceió, pensando em nada, o rosto na janela. Ao chegar à Praça Centenário, demos com um tremendo engarrafamento e a cidade parou de passar, bem em frente a uma parada de ônibus lotada, cheia de gente apressada em fim de expediente, dando-se a si e à vida uma importância, uma urgência que não é bem o que a vida pede. Fiquei olhando com indiferença pra tudo e todos, matando tempo. Mas, alto lá! Um casal na calçada chamou minha atenção. Um casalzinho a mais, mas tinha algo diferente com eles, eles tinham um não sei quê... Não os entendi, logo assim de cara, e fiquei a observá-los. Que se passava com os dois?... Ah, vejam só: eram um casal de surdos-mudos! Que graça eles eram! Com que delicadeza davam-se em carinhos! Eles faziam pequenos gestos, desenhavam coisinhas no ar, escondiam-se nos pescoços um do outro como se fossem cochilar em pleno caos urbano. Sorriam, indiferentes ao barulho e às palavras, espalhando formas e expressões que eram ver a calma neste mundo desesperado. Eles eram a coisa mais linda, o que mais comunicava afeto, com aquela suavidade que, em dois movimentos, transmitia um sentimento que eu jamais conseguiria alcançar, mesmo em um milhão de palavras a um bilhão de leitores. Lá estavam eles, lindos, doces, poetas altíssimos em plena atividade; ali, de bandeja pra nós; ali, a céu aberto, expostos à vida, mas cobertos de pudor – quem ousaria perturbá-los?

Esses dias, observando, admirado, as estudantes e docentes do curso de Dança da Universidade Federal de Pernambuco, vi algo semelhante, essa intenção de quem quer pôr a palavra à esquerda e mostrar, em gesto, o que trás no coração, e acaba dizendo mais que os tratados de um ônibus cheio de eruditos: a boniteza de uma pessoa alheia ao texto, saltando rumo ao além-texto onde vive o casalzinho.

Fico pensando: servirá a palavra apenas pra falsificar a vida? Proponho que, no final de uma tarde qualquer, nós, como os surdos-mudos, pelo menos uma vez na vida tentemos olhar pra nossa cidade como se a palavra nunca houvesse existido. Talvez, enfim, enxerguemos um pouco de beleza.

(P.s. tenho que confessar uma coisa, pouco lírica mas sincera: hoje eu lembro o mudinho e penso: quem sabe paparicar mulher daquela maneira nem precisa trabalhar... Será que ele ensina aquela arte pra eu usar aqui em casa?)

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