Tentação

Sentado num banco qualquer, numa calçada anônima, numa rua esquecida, numa vida que queria esquecer, olho para minhas mãos. Esfrego uma na outra, distraído, até quer noto as grandes veias que marcam meus pulsos corro, com as pontas dos dedos, o percurso que elas traçam do meu pulso esquerdo e pelo antebraço inteiro.

Imagino o quanto é fina a camada de pele que as recobre, com uma unha mal aparada arranho-a, deixando um fino risco, espantosamente reto, ao lado duma grande veria, verde e saltada. Como é fácil romper esta patética linha, penso que seria algo simples, até mesmo usando uma faca cega, rasgar esta tênue película que impede meu sangue de correr livre para fora de meu corpo; em como seria doce o abraço da Megera.

Vi, ou li, em algum lugar que apenas cortar os pulsos pode não ser o suficiente, é preciso que a lâmina corte ao longo da veia, deixando um longo vale, do qual flui rubra, a vida. Assim seria melhor, preferiria não correr o risco de falhar; nada mais humilhante do que ser um suicida fracassado.

Olho ao meu redor, me parece um bom lugar, um bom momento. Tem uma praça no outro lado da rua, cercada por árvores carregadas de folhas de bronze, como só o final do outono as colore. Nela uma cancha de areia, com traves amarelas que montam dois gols sem rede, lá um punhado de crianças correm, rolam, se sujam, se machucam, riem. Seriam bons últimos minutos, vendo o cobre das folhas que a brisa embala, num dia fresco, com o riso dos infantes a brincar, uma das poucas coisas que ainda fazem com que meu peito pareça vivo, ecoando em meus ouvidos.

Não consigo deixar de imaginar como reagiria quem me encontrasse, sentado pálido, com crostas de sangue seco nos braços que pendem inertes sobra manchas escarlates no chão. No rosto uma expressão de alívio, as feições relaxadas de quem dorme o sono dos justos. Penso em minha mãe, meu irmão, amigos, em quem diria “Eu falei.”, quem verteria lágrimas sinceras, quem usaria meu enterro apenas como uma desculpa para faltar um dia de trabalho, quem sentiria minha falta, quem não se surpreenderia, quem ficaria contente.

Mas por mais tentador que possa ser fazê-lo, não será hoje, talvez amanhã, talvez nunca. Talvez venha a morrer com noventa anos cercado de netos, ou com trinta e dois num apartamento minúsculo cercado de garrafas vazias e sonhos mortos; talvez seja imortal, e não consigo conceber sina mais assustadora.

Abandono o banco e enquanto caminho para lugar nenhum, vejo um prédio alto, um pensamento e um sorriso brotam em mim “Me cortar nunca realmente me atraiu, agora, queda livre...”.

Pietro Tyszka
Enviado por Pietro Tyszka em 31/08/2012
Reeditado em 31/08/2012
Código do texto: T3858840
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