O que a barba traz
Ter barba foi uma realização pessoal. Admito.
Enquanto espinhas surgiam e pelos cresciam, minha barba não dava nenhum sinal de vida. A única coisa que havia no meu rosto eram os finos fios que formavam o que carinhosamente é conhecido em Porto Alegre como bigodinho de carroceiro.
Apesar disso nunca deixei de deslizar a lâmina de barbear por toda a circunferência do meu quadrado queixo. Diziam que quanto mais raspasse os inexistentes pelos, mais rápido eles cresciam. Não queria ficar parecido com meu pai e ostentar um proeminente bigode. Queria que a barba preenchesse toda minha face. Não queria um espacinho sequer em branco.
Queria ser um judeu ortodoxo. Um rei Leônidas de Esparta. Um Dom Pedro II em sua clássica foto.
A barba dignifica um homem. É o batismo de um ritual de transição. Deixo de ser menino e me torno homem - ao menos na aparência. Recupero aquilo que a divisão de classes roubou: a confiança.
Um homem com barba vê a vida de uma forma diferente e, principalmente, é visto de uma maneira diferente. Um homem com barba é levado à sério. Um homem com barba se torna maduro, mesmo suas atitudes ainda sendo imaturas. Um homem com barba vira um excelente orador, por mais que gagueje e demore a se expressar. Um homem com barba tem suas opiniões respaldadas pelo simples fato de parecer mais homem.
Por isso eu orei, jejuei e clamei para que os pelos de meu rosto deixassem de ser apenas uma penugem adolescente e, enfim, pudessem se tornar uma verdadeira barba. Quando, finalmente, eles eclodiram com mais intensidade de minha face me realizei prontamente.
A grande questão era o tempo necessário para que ela deixasse de ser uma sujeira bagaceira e se tornasse o estandarte de uma nova era. Foi necessário quase dois meses - isso mesmo, dois meses! - para que ela crescesse o suficiente.
Neste período tive que aguentar as mais diversas piadas a respeito daquilo que chamava de barba - ou projeto de barba. Olhares curiosos e irônicos me alcançavam constantemente. Pedidos e solicitações dos mais variados estilos chegaram aos meus ouvidos:
- Cara, por favor, corta esta barba! Está horrível!
Não. Nunca. Jamais me dobraria aos efêmeros desejos da opinião alheia. Não me adequaria ao padrão estético simplesmente porque é o aprovável.
Finalmente eu tinha barba. E de verdade. Não só ela, mas tudo que vem junto: confiança, maturidade e credibilidade.
Tornei-me outro homem. Mais convicto de minhas opiniões. Mais transparente em meus pontos de vista. Mais eloquente em minhas avaliações.
Duas coisas me chamaram atenção. Sem barba eu ficava com cara de guri e adicionando o fato que passo maior parte do tempo compenetrado em minha imaginação, transmitia uma exagerada seriedade. Quase agressividade, para dizer a verdade. Por isso em locais públicos as pessoas não sentavam ao meu lado. Isso desde de sempre. Talvez por acharem que eu demonstrava algum perigo - eu? Perigo? Com a barba isso mudou Eu deixei de ser um trombadinha para me tornar um intelectual. Os lugares ao meu lado no ônibus agora são ocupados sem demora.
Outra coisa foi a atenção das mulheres. Combinando minha seriedade com minha barba - e com os fios de cabelo brancos que absurdamente já tenho - conquistei olhares que antes não presenciara. Nunca aprovei o olhar predatório dos homens para as mulheres. Depois de ter sido alvo de um olhar destes vindo de uma mulher, nunca mais cogitarei a hipótese de despir mentalmente alguém. É constrangedor. E tudo isso por causa da barba.
Depois de um tempo isso mudou. Afinal, a barba continuou crescendo. Eu deixei de ser um Rodrigo Santoro e me tornei um autêntico mendigo.
A barba havia alcançado níveis alarmantes. Comprida e desgrenhada. Podia fazer trancinhas ao estilo Jack Sparrow. Estava na hora apará-la.
Fui para frente do espelho com a tesourinha em mãos e comecei a cortá-la. Rapidamente os pelos encheram a pia do banheiro, caíram sobre o chão e por dentro da minha camisa - inexperiência da minha parte. Alinhada, minha barba voltara a seu estado de gloria. Curiosamente meus dedos não pararam de se mover. Continuei a cortar o que vinha pela frente. Americanizei meu nome e incorporei o Mãos de Tesoura. Comecei cortando a barba, continuei com a suíça e a voltinha da orelha e quando percebi já havia cortado grande parte do meu cabelo.
Parei. Larguei a tesoura. Olhei atentamente o espelho e... Não é que ficou bom? Por incrível que pareça eu cortei muito bem meu cabelo. Nos moldes argentinos. Alto em cima, curto nos lados e comprido atrás. Com a barba o visual ficou excelente.
Deixei a barba crescer para que com ela se manifestasse as virtudes masculinas instintivas. Só não esperava que ela trouxesse o dom de ser cabeleireiro.