O furto do canário
Manhã de sol intenso no subúrbio. Casas banhadas pela brisa do mar, não tão perto, nem tão distante. Mas o mesmo e velho mar. Mar de antigos corsários. Mar de tempos de conquistas. Hoje, tão maltratado pela poluição que se aglomera em qualquer canto do que antes era chamado de areia. Apenas um rastro fino de esgoto que serpenteia até as águas do tão sofrido mar.
De mãos dadas segue o casal, alheio ao movimento tímido do começo da manhã de sábado. Preguiçosa razão de acordar para a batalha de mais um dia, para os infortúnios que os olhos teimam em não querer ver, mas que às vezes o coração tão somente insiste em querer compartilhar.
Subúrbio antigo, esquecido pelo poder público, sobrevivendo da teimosia de seus habitantes.
O homem, corpulento, carrega na mão livre uma gaiola. Nela, o canário dourado que contrasta com a paisagem quase incolor. Passeio a três.
A mulher, pequena, resignada com o destino que tantas outras compartilham: vida sofrida, tempo curto para sonhar.
Entram, ainda de mãos dadas, na pequena loja. À porta, ele deixa a gaiola. Proibida a entrada de animais, mesmo engaiolados.
Não passam nem quinze minutos dentro do estabelecimento.
Assim que chegam na saída, ele olha e não vê a gaiola. Desolado, dá uma vista de olhos por sobre as bugigangas. Nada. Sobe-lhe do peito um desassossego, uma agonia sem par. Procura um funcionário e pergunta pela gaiola. A resposta negativa o exaspera – ele não é calmo, pior quando lhe causam algum dissabor. Sem jeito, a funcionário chama o gerente, que tenta acalmá-lo. Sem acordo. O homem quer sua gaiola, quer o canário amarelo.
O gerente pergunta o preço do canário. Indignado o homem pergunta qual seria o preço se tivesse perdido um filho. O gerente perde a voz, cala o argumento.
Sem acordo o homem vai à delegacia prestar queixa, cada vez mais indignado.
Na sua vez, senta-se à frente do escrivão desanimado, cansado de redigir tantos lamentos, já virando um robô a serviço da sociedade.
O homem começa a narrar o acontecido. Inclusive, conta que teve acesso às câmeras de segurança da loja e pode ver o autor do delito: uma mulher furta-lhe a gaiola.
O escrivão vai digitanto tudo e comenta que nem em casos de assassinato a testemunha tem tantos detalhes para contar. Impressionante.
Porém, quando o homem diz que o produto do furto foi um canário, o escrivão lhe diz que canário é animal silvestre. Segundo a legislação, manter animal silvestre em casa é crime.
O homem perde as cores da face, antes avermelhadas por conta da raiva. Agora, cores pálidas.
Ele ainda insiste com o escrivão, argumentando que o canário está com ele há muito tempo, que já é um membro efetivo daquela pequena família. Tenta, em vão, comover o duro funcionário público. Em vão mesmo, pois não tem como registrar a queixa.
O homem sai, desolado, com a mulher, não mais de mãos dadas. O crime – o furto do canário – derrubou qualquer resquício de romantismo.
Ainda no pátio da delegacia, o homem vira para a mulher e pede a ela que entre novamente na sala do escrivão. Ele quer que ela chore copiosamente, para que possa, então, comover o escrivão.
A mulher assim o faz. Mas, de nada adianta. Até parece que o escrivão não tem nenhum sentimento.
Ao sairem da delegacia, o homem diz que está com tanto ódio que se encontrar o canário é capaz de matá-lo.