O que eu queria ser

    Já quis ser de tudo. Em cada fase de minha vida escolhia uma profissão para abraçar.
   Quando criança sonhava em estar nas alturas, dentro de um avião, servindo aos passageiros, conhecendo o mundo - queria ser aeromoça.
      Mais tarde, passei a sonhar com a profissão com a qual eu salvaria muitas vidas - médica. Imaginava-me de jaleco branco, com o estetoscópio pendurado no pescoço, e uma maletinha na mão onde estariam o termômetro, as espátulas, o receituário, o carimbo com o meu CRM, e uma ou outra amostra grátis de medicamentos. Meus pacientes seriam amados, bem cuidados, teriam a mesma atenção e o carinho que eu recebia de meu médico, Dr. Fábio Mara, a quem eu amava. Os problemas gastrintestinais eram uma constante em minha infância. Mas eu até que gostava de ter uma diarreiazinha, uns enjôos, uma febrezinha, só para estar sob seus cuidados.
    Fui transferindo os sonhos para outras profissões. Passei pela arquitetura, afinal, tinha dom para desenhar, porém, era péssima aluna em Matemática. Eu não seria capaz de fazer cálculos estruturais de jeito nenhum. Desisti.
    Cheguei a pensar em ser atriz, acreditava ser talentosa. Acho que eu era. A família e os amigos diziam isso. Minha capacidade de fazer imitações, minha desenvoltura na atuação em peças escolares, minha facilidade em criar improvisos, eram inegáveis. Eu não só atuava como também criava enredos. Com uma imaginação fértil, construía histórias, poesias, frases. Cheguei a ganhar alguns concursos de redação no colégio. Não sei por que não batalhei pela carreira. Penso que se o tivesse feito, hoje talvez estivesse contracenando com grandes atrizes da minha geração, como a Cássia Kiss, a Christiane Torloni, a Maitê Proença, a Natália do Vale e outras. Pretensão de minha parte? Sim. Se eu tivesse sido atriz, faria todo o esforço para estar entre as melhores.
    Também pensei em ser jornalista quase que pelas mesmas razões que me fizeram pensar na arte de representar: imaginação, criatividade, capacidade de improviso, desenvoltura para narrar, declamar, recitar. Esse sonho também acabou sendo substituído, não exatamente por outro, mas por uma realidade que chegou sem perguntar se eu estava pronta para recebê-la: a necessidade de começar a trabalhar logo depois da conclusão do ensino médio.
    Como a maioria dos brasileiros, eu trabalhava durante o dia e, à noite, ia para a faculdade. Formei-me professora e quando comecei a lecionar, percebi que aquela era a profissão que eu tinha mesmo de exercer. Na sala de aula eu poderia ser de tudo um pouco: atriz, médica, jornalista, cientista. Descobri que eu poderia “viajar” na imaginação, representar, criar, contracenar, dirigir, improvisar, me divertir, divertir a classe, porém, sem jamais esquecer de meu principal compromisso que era compartilhar o meu saber e contribuir para a transformação da realidade de cada um de meus alunos. Acho que cumpri bem o meu papel.
    Hoje, não mais faço parte do mundo dos livros didáticos, dos cadernos e do quadro-de-giz. Agora sou aspirante a escritora profissional. Apesar de nunca ter feito parte de meus planos e sonhos, escrever tornou-se algo vital para mim. Desde que me aposentei, tenho preenchido a maior parte de meus dias com a literatura. Ora lendo, ora construindo minhas próprias histórias (tenho dois livros publicados), vou seguindo na certeza de que encontrei um modo de abrandar minha inquietude.
    O Livro das horas, de Nélida Piñon, foi o último livro que li (terminei há dois dias). Dele, destaquei dois trechinhos com os quais me identifiquei:
     - “Orgulho-me de um ofício que fixa no papel as emoções propensas a se perderem.”
      - “O escritor é um mistério. Faz crer aos demais que sua caneta o torna um herói. Galga o Himalaia a serviço da narrativa, indiferente a que a neve lhe congele as falanges. Só lhe importam o cume e a glória.”
      Mais do que prazer em escrever, sinto liberdade. Mergulhando no mundo das palavras, sinto que sou livre para ser o que quiser, fazer o que quiser, de estar onde quiser. Misturo realidade e fantasia, me alimento de metáforas, invento, minto, omito, disfarço, destorço a realidade, mas também falo verdades. Só eu sei o que sinto. Meus personagens existem? Não sei. Talvez sim. Talvez não. Que persistam as dúvidas, para que provoquem reflexão.
    Tudo o que eu queria ser não fui, mas sou o que nunca imaginei: engenheira de ilusões.    
 
 
 
 
Jorgenete Pereira Coelho
Enviado por Jorgenete Pereira Coelho em 30/08/2012
Reeditado em 30/08/2012
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