LIVRA-ME, MEU DEUS, DO DETRAN! (tragicômico)
Ajoelhando e clamando aos céus:
Maceió, minha terra, é uma cidade tão linda (pausa lacônica)!
Mas, quando eu estiver por lá, livra-me, meu Deus, de precisar ir ao DETRAN…
(sinal da cruz, mãos juntas para a ladainha, pulmões cheios)
Rezando profundamente:
1. “cabrassafadum furafilandum est"
Livra-me, em primeiro lugar, dos fura-filas, e seu jeito reptiliano de locomoção.
Livra-me do cara dura que, acenando falsamente ao atendente, faz que o conhece e se chega, antes de todos, antes da vergonha na cara, e é atendido pelo atendente, que ainda esboça uma reação mas, honrando a lei de inércia, atende-o – até porque a ordem dos fatores não altera a má qualidade do produto.
Livra-me, também, do segurança de Deputado, bruto despachante de Toyota que, austero e ameaçador, antecipa-se à fila e, arrogantemente, paga seu boleto, saindo, triunfante e heroico, a olhar por cima das mulheres, dos aposentados, dos coxos, dos motoboys, dos analfabetos, dos sem-peixe, dos recém-casados, das lactantes, dos donos de fusca, e de toda a sorte de inofensivos e coitados que a vida deu para o mundo criar.
Livra-me, por favor, do fura-filas autoridade pública, o da carteirada, que tem a coluna reta e os olhos caídos; que tem vergonha também, mas tem mais pressa que vergonha.
Livra-me, ademais, da falsa-manca, da falsa-grávida, da freira oportunista, do primo do vizinho, do vendedor de vaga, do que entra pelos fundos, do despachante profissional; livra-me, enfim, de todos os imunes à fila, imunes ao vexame, imunes à vida coletiva.
2. “velhitas malis, quengorosa est; calvum cornalis, piorum est”
Livra-me, ó meu Deus, da atendente de cordinha nos óculos. E se ela estiver lendo um catálogo da Avon, afasta de mim esse cálice! Explica a ela que eu não criei o desamor. Ilude-a, Senhor; faz com que ela creia num namoro novo, que ela sorria, pois que, admito, quando ela espicha as sobrancelhas e olha a papelada por cima daqueles óculos pontudos de trinta anos atrás, arrepia-me a coluna até quase arrebentar a nuca. E se ela leva tudo para os fundos, a consultar sei bem quem, faltam-me até as pernas. Livra-me dela, Senhor, que ela me apavora.
Livra-me, Santo Pai, do homem de peruca a quem a mulher de cordinha nos óculos leva os documentos. Ele é o anatomista da burocracia, o dissecador do detalhe, o assassino da esperança. Ele é o sádico-burocrata-negador, cuja expressão orgástica ante a descoberta de um entrave burocrático seria de enrubescer até o mais despudorado dos antigos romanos. Livra-me dele, desse lascivo, que nos bota para dar viagens sem fim, que nos sonega a verdade a conta-gotas; esse incendiário de gasolina; esse arauto do Viagra; esse homem só língua e dedos…
Livra-me, também, dos diretores, desse tribunal nazista de apelação, no qual já entramos condenados… Livra-me deles antes que eles se livrem de mim porque, Senhor, eles são tão peritos em se livrar das pessoas que é bem possível que, antes mesmo que o Senhor me conceda a graça, eu já esteja na fila de novo, vendo os fura-filas passarem rumo à mulher de cordinhas nos óculos (comparsa do sujeito de peruca) que, indiferente à dor alheia, lê o catálogo da Avon…
3. “inspetorum inspetandum, feladaputatis est”
Senhor, por fim, livra-me, se não forem possíveis os pedidos acima, do cara que passa o carro em revista… Livra-me deste censor da mecânica, deste tarado da lataria, deste crítico da manutenção. Livra-me de vê-lo esfregando as mãos com uma estopa e fazendo um não com a cabeça… Livra-me dele, Senhor, que a este só faltam (se é que faltam) a foice longa e a capa negra, e o corvo fincado nos ombros, repetindo o famoso verso: “nunca mais; nunca mais…”
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