câmera lenta

Ela me olhou. Devagar, bem devagar. Algo que precisa de pelo menos trinta minutos pra ficar pronto. E meu coração trabalhava como sensor de incêndio. Agora ele sabia que ia queimar. E eu também. O pó serviria de moldura pra esse quadro. Um pequeno fósforo que até mesmo sem oxigênio continua aceso. Pra sempre, eu sei. Ela me olhou. Eu era ali um animal em cativeiro. Arranhando as grades. Depois a raiva seria a minha maior paixão na jaula. Então o cansaço viria com tudo. Eu sabia que estava numa área de risco. Mas aqui não tinha aqueles avisos de “não entre”. A minha alma estava sendo dobrada a cada piscada que ela me dava. Logo mais seria apenas um pedaço de papel rasgado que ninguém quer. Não existe muita coisa além daqui. Não existe muita coisa que importe. São poucas as horas que viram dias. Até meses. Na verdade, quase nenhuma. Ou uma só. Tem vezes que imagino tantos mundos que eu já nem sei mais qual é o meu. Eu só tenho um mundo. Um único mundo que me deixa com vergonha quando passa perto de mim. Timidez é desculpa pra eu não me aproximar. É que eu sei que vou pegar fogo. Mesmo sem ar. Mesmo sem o vermelho, o amarelo, o laranja. Sem o cinza que é uma outra maneira de dizer que nada vem depois. Que os momentos mais vivos que alguém pode ter tem a duração de um comercial de chocolate. De ver um helicóptero sobrevoando tão perto que é quase dentro. Bem rápido, bem rápido. E devagar. Ela me olha devagar não querendo que eu encoste. Não querendo que eu ganhe tempo. Que isso vire tempo. Mas eu não consigo evitar. Eu estava contando desde o início. Desde o prefácio e a capa do livro. Ela só não quer que eu ganhe tempo. Ela só não quer que eu a deixe por uma idéia melhor. Uma flor mais bonita. Uma caligrafia mais caprichada. Um sorriso um pouco mais largo. São poucas as horas que viram dias. Tudo está passando em câmera lenta. Tão lento que o vestido dela parece outra pele. Seu toque é outra pele. Seu beijo é outra pele. São camadas inteiras de blindagem. Eu sabia que aqui era uma área de risco. Exatamente a mordida da Eva na maçã do pecado. Ela me olha e eu presto atenção na sua boca. A língua está presa naquele céu. É um nó muito forte que se apertar um pouco mais, a fita se arrebenta. Nós agora somos assim. Dois pedaços que em algum passado foram um só. Quem sabe um efeito especial de cinema muito elaborado que pareceu real. Real, real agora que é dinheiro. Mas eu não consigo comprar nada com essa minha realidade. Tão barata, tão longe, tão funda que chega a ser miragem. Eu repito que isso é só um truque pra me deixar confuso. Eu repito de novo e não funciona mais. Já não sei mais onde colocar os meus vícios que me ajudaram a tentar esquecer. Não é mais esquecer o ponto principal. Pouca coisa importa. Eu quero aumentar e não fica maior. Só incha. E permanece com a mesma forma, a silhueta dela. E ela me olha. Pede pra mim que, por favor, não a prenda. Eu falo pra ela ir. Pra onde? É segredo. Também não importa. Eu sei que não existe muita coisa além daqui. Pode ir, eu deixo. Eu sei mesmo que não existe muita coisa além daqui.

Beatriz Adrivin
Enviado por Beatriz Adrivin em 28/08/2012
Código do texto: T3853477
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