[Crônica das Horas Erradas: A Constatação da Montanha]
I
O texto abaixo tenta [eu disse tenta!] falar do deslocamento de uma palavra muito corriqueira do seu alvéolo de habitualidade, lugar onde se acha comodamente assentada, a ponto de não admitir discussões. Talvez não chegue a ser um claro exemplo de metalinguagem, mas é um uso da língua para falar da língua, ou, se quiserem, a linguagem refletindo sobre si mesma. E pronto. Para mim que não sou técnico nas artes da linguagem, recorro ao meu mundo mítico para tratar dessas questões — os meus lugares de descobrir o mundo: o chalé amarelo, as ruas da minha cidade antiga, e mais fundamentalmente, o universo da Fazenda do Barreirão.
Aprendi que as questões mais complexas da vida podem ser rebatidas numa das três fases-sementes do meu fazer do mundo, o Chalé, a Cidade, e a Fazenda. Nesses três elementos, eu acho comparações, fundamentos de tudo — quem sabe se a Mecânica Quântica não poderia ter sido pensada sob a goiabeira do quintal do chalé? Em Minas não tinha maçãs, mas tinha goiabas tão grandes quanto! Ou se o modelo da dupla barreira de Fissão Nuclear não poderia ter sido concebido observando-se os marimbondos-tatus no seu trabalho de reforma de suas casinhas, com o barro do rego-d’água lá da Fazenda? E na cidade, todas as angústias, tragédias descritas pelos gregos — gentes traiçoeiras, feitiços e magias capazes de matar, cafajestagens, traições, mortes — tinham um paralelo nas conversas que eu ouvia sentado no colo de minha mãe — caçula é sempre manhoso... É claro que eu estou exagerando um pouco, estou brincando com as palavras, estes restos de nada, como sempre faço! Também, se eu me levasse a sério, eu me matava, uai!
Uma questão de espaço e tempo — não na Física... ou muito me engano? Certa vez, lá no fundo do meu quintal, eu observava os passos de um formiga que transportava uma pequena larva branca, mole... molenta... tirei-a da formiga, examinei bem perto dos meus olhos que, infelizmente, ainda não eram míopes... e depois devolvi-a a ela, para não perturbar o seu labor. Mas, de onde teria vindo essa larva? Segui a o caminho de volta das formigas e fui dar na goiabeira! Olhei... e vi: eu havia deslocado uma pedra limenta do seu alvéolo, e ali, no espaço que pertencera a pedra, a transformação... bichinhos, minhocas, as tais larvinhas brancas, e, é claro, as formigas trabalhadeiras fazendo o seu festim. O tempo se acelerou para aqueles seres que até então viviam sob a pedra, nas reentrâncias da terra húmida do mundo do alvéolo. Um elemento perturbador, eu, que reinava no quintal do chalé, causara uma súbita transformação do espaço e do tempo daqueles seres [alguma pista sobre o por quê de eu ter me tornado físico? Não sei... e não importa, pois agora nem sou mais nada!].
Com certeza, a linguagem daqueles seres se modificou a partir dessa ingerência minha. Falo da expressiva linguagem corporal como expressão dos riscos em que foram colocados: as formigas, a perda da humidade necessária à procriação e manutenção de suas vidas, a morte violenta como possibilidade iminente — o espaço modificado e o tempo acelerado!
O deslocamento de habitualidade — mais apropriado seria falar da transfiguração de palavra — que intento fazer com uma palavra não tem, nem de longe, as consequências que teve o deslocamento da pedra do seu alvéolo para aqueles seres. Não haverá formigas fazendo a festa com as desprotegidas larvas, nem minhocas tentando escapar, tatuzinhos correndo barrancos acima, em busca de outros alvéolos — nada disso!
***
II
Como eu sempre faço, dormi em horas erradas — agora, enquanto as pessoas dormem, eu vagueio na noite... E não sei o que foi que me trouxe à lembrança essa constatação que eu preciso registrar: observando meus textos, noto que uma palavra, simples, muito simples imiscui-se, de vez enquanto, na minha escrita e, espanto, até na minha fala: "montanha"! Não gosto de estar a reformar as minhas origens; assim, essa usagem é, posso dizer, falsa! Eu não aprendi do mundo prático essa palavra; meus olhos de criança jamais viram uma "montanha"; mas viram "morros", muitos morros, morros altos, baixos, íngremes, suaves... mas eram todos "morros", e nunca "montanhas"! O Rio Paranaíba da minha vida sensiva corria entre morros, morros vários... e lá em Itumbiara, quando a lua surgia lançando um facho de luz frouxa sobre o grande rio, ela surgia no topo de um morro alto, e não de uma montanha!
A palavra “montanha” transfigurava-se: não prestava para descrever um acidente geográfico, mas sim, um lugar onde as fábulas aconteciam — era a morada de bruxos, duendes, fadas, mágicos, ladrões... [e que não sejam estes últimos a causa de alguém transfigurar, para as crianças, a palavra “Brasília”!].
O benzedor que fazia rezas bravas para afastar as cobras venenosas que matavam o gado enviava-as para um morro pedregoso, alto, alto, íngreme, difícil até para os cavalos, um descuido e a gente cairia pela garupa do animal! Mas acho que se ele dissesse na reza a palavra "montanha", as cobras, todas nascidas por aquelas bandas mesmo, se recusariam a ir para lá! Para o morro cheio de juás espinhentos elas até iam, mas para a montanha, não...
Como eu disse, a palavra é tão simples, tão simples que até eu mesmo me surpreendo com esta constatação que só pode brotar em minhas horas erradas: no meu mundo, esta palavra só aparecia nos contos, nas histórias escritas! Sim, pois na minha vida real, na geografia em que eu vivia, um morraria danada, "montanha", não importa se pequena, ou tão alta quando o Everest, era "morro"! Então, a gente não chamaria o Everest de montanha, mas seria Morro do Everest! Dizer “montanha” era contrário aos costumes, e não tem registro na minha primitiva memória auditiva... a não ser nos contos de fadas que a professora lia...
Mas eu cresci, li muito, estudei até ficar besta, e agora, até nos meus poemas, vez por outra, eu escrevo "montanha", mesmo sabendo que essa palavra não tem existência real no meu original nomear das coisas! Mas isto não é defeito meu não — essa alquimia de nomes, sentidos, dizeres é coisa fina, grã-fina até! Apenas um registro, e registro feito em horas erradas da noite!
A sorte ou o azar mesmo é que, até hoje, eu nunca morri por ser assim, memorioso de coisas inúteis!
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[Desterro, 28 de agosto de 2012]