O HOMEM MÉDIO
Quando eu era menino, pensava que toda a gente adulta era sabida em tudo, e que as crianças eram um bando de irresponsáveis que poderiam desmantelar o mundo, se dele se apossassem. Já adolescente, passei a pensar diferente, e a achar que o ser humano se dividia em classes mais ou menos definidas, no que diz respeito à grandeza individual. Pensava que havia, de um lado, os magníficos, como um Cristo, um Einstein, um Da Vinci, e, de outro, os homens médios, grande massa do planeta. Mais abaixo, em número proporcionalmente bastante reduzido (mas que fazia grande estrago), estavam os idiotas completos: nazistas, fanáticos religiosos, ultramaterialistas e outros do tipo.
Cresci com esse negócio plantado fundo na cabeça. Mas o que mais me interessava era entender o homem médio, o homem geral, o homem da rua, com quem convivia, e o que era minha tendência, hoje confirmada. E, juntando o que eu via, o que lia, o que me ensinavam, eu criei, com base num jogo de equilíbrio, um perfil desse homem médio que, creio eu, é bastante preciso, ou, pelo menos, bastante justo. É o seguinte: o homem médio é aquele que crê na Inteligência Superior, e que às vezes, com um baita esforço, consegue observar a grandeza e o equilíbrio das coisas, o toque artístico na composição dos seres vivos, a filosofia do cosmos, a presença do Abstrato. Por outro lado, entende também, e com a mesma limitação de acima, a coerência da teoria científica pura, da criação espontânea das coisas; às vezes duvida do acaso que supostamente as gerou (acha acaso demais), como duvida das próprias chances de ganhar na loteria (embora seja apostador assíduo), mas se deixa seduzir, também, pela lógica da tese, ora achando-a exageradamente incompleta, ora achando-a perfeita. Assim, tem medo da morte e tem amor pela vida, sob qualquer ponto de vista em que se coloque. Mas esquece de todo esse filosofar se diante de uma cerveja gelada e uma partida de futebol, ou de uma mulher bonita que passe, ou de um samba que role, ou de tudo junto. Politicamente, tende à esquerda, desde que esta não apresente nada além de “revolução, mas devagar”, ou tende à direita, desde que esta não apresente nada além de “conservação, mas devagar”. Tem seus cinco ou seis autores favoritos, em literatura como em música, e acharemos entre eles os médios e os brilhantes artistas, que ninguém tem neurônios de ferro. É confessional, admite as mancadas que dá, salvo as mais cabeludas. É materialista, gosta de grana, mas não nega um empréstimo a um camarada, embora possa, às vezes, fazê-lo com lágrimas nos olhos, já saudoso da cifra que tem um só “V”. Sonha em ficar rico, claro que sim, mas muitas vezes desiste da empreitada ao calcular os juros que a demanda cobra. Vive bem como remediado, viajando em sonhos, exibindo as joias do cotidiano – mas, claro, sem deixar de fazer sua fezinha, pontualmente. É, enfim, uma bela criatura, digna de muita admiração e de alguma pena; alguém em que as palavras “amigo”, “compadre”, “camarada”, “companheiro”, “irmão” cairão sempre como luvas, o que é ser muito mais humano que ter só virtude ou defeito.
Mas, para minha total desilusão, o tempo passou, minha geração criou-se adulta, e vejo que o homem médio por mim suposto é uma baita fantasia, uma conta de exceções. As mesas de bar, as praças, os aniversários, os jogos de futebol em companhia dos homens médios são apenas imagens de um inalcançável sonho ingênuo – diria mesmo, uma utopia. O homem médio que vejo prevalecer hoje, na minha geração e nas que dela se aproximam, não é bem assim, não é nada assim. Ele é o seguinte: vê a Inteligência Superior, a que chama Deus, como um velho carrasco e egocêntrico que pode meter-lhe a chibata ou dar-lhe uma Ferrari, conforme seja o homem médio um bom ou mau bajulador. Não filosofa, não pensa sobre a existência, nem mesmo se em estado de pileque. As teorias de criação do universo ou surgimento da vida são meras chatices que teve de aprender para passar no vestibular, formar-se e ganhar dinheiro, que só empresta a juros, apesar de se gabar de tê-lo em abundância. Só lê livros que tenham utilidade, e para ele reflexão não é utilidade, utilidade é ganhar dinheiro e acumular coisas para mostrar ao vizinho, pois essas coisas só têm valor se os olhos do vizinho as medirem – conforme demonstram algumas propagandas de TV, que vendem suas coisas chamando os clientes de medíocres invejosos (ativos ou passivos) do sucesso alheio. Ouve a música que tocarem, e acha tudo bom, pois a música é apenas um barulho a mais, dos que sempre nos cercam enquanto vivemos e tentamos ganhar dinheiro para provar aos outros que somos igualmente iguais. Politicamente, de duas uma: ou não gosta de política, e não por ideologia (que nem sabe o que é), mas porque é legal, é popular dizer-se essa frase: “eu não gosto de política...” Ou é o próprio parasita político: o assessor eterno, o candidato eleito, o rastejante do discurso, o sabido sem opinião, cujo partido é o sem ideais, o da hora, o da vantagem. É, quanto ao ego, o herói, o que não erra, o que tem amigos influentes (por exemplo: pode livrar uma multa de trânsito, descolar um porte de arma de fogo etc.), o que tem amantes debaixo do nariz da esposa, o grande piadista, o antecipador das tendências, o motorista sensacional, o guia da Europa, o entendido de câmbio, o confidente do prefeito, o especialista em vinho, o que sabe dar nó clássico em gravata etc. etc. etc. Enfim, não é digno de admiração nem de dó (só um santo teria dó por alguém assim, e não estamos vivendo um tempo santificado); ele só anima em nós um sentimento forjado em plástico, algo sem coração, como quando vemos um boneco do Ken, um ídolo sem talento, um despachante da bolsa de valores, um alucinado por moda, um fã-clube de “teenagers” e por aí afora. Ele é, Pai do céu, a coisa mais sem graça que jamais se viu; e é ele que (sinal da cruz), por existir em maioria, cria o ambiente das cidades...
Mas não é só isso!, como diriam os vendedores da TV por assinatura. Há os outros lados da questão, que você recebe totalmente grátis, e com os quais finalizo minha análise:
1) a elevação da autoestima dos antes chamados idiotas completos, que já podem sonhar com outro tipo de idiotice, mais solene, bem vestida e remunerada, e
2) os gênios da História estão gradualmente se tornando figuras quase mitológicas, mentiras e invenções – amanhã, nossos netos, rindo da nossa cara, dirão que Gandhi é tão real quanto Papai Noel, mas que o Superman de fato existiu, foi morto e pregado numa cruz, ressuscitou em forma de país, e que nós tentamos, numa enorme conspiração, esconder sua inescondível existência, mas tudo foi em vão, porque no fim a verdade sempre prevalece.