VERTENTES CONTEMPORÂNEAS
Os óculos do meu avô estão caindo, descem pelo rosto suas lentes temporárias. Suas mãos operárias e lúcidas escorregam acenando de longe para todos nós como um navio descendo a correnteza do rio, em direção da sua ilha interior. Suas rugas escondem tesouro milenar, enterrado por quem acostumou a esconder seus valores, incluindo os valores pessoais e cívicos. Lá se vão os óculos e o navio corporificado, levando na bagagem o tempo do seu coração e o coração do seu tempo.
São tantas as ilhas e tantos os tesouros, que meu pai ficou à deriva, ficou como quem soubesse de algo muito importante, algo capaz de transformar o curso das águas, que devolvesse ao corpo as rugas passadas e lisas. Suas mãos operárias chegaram cedo à guerra, não dormiram o suficiente, ou dormiram bastante. Não se decidiram ainda, ou fizeram questão do silencio, fazendo com que as respostas sejam as perguntas feitas, uma forma de defender atacando nas estrelinhas da história, nas sombras das vírgulas, para que a luz das gerações faça uma análise mais clara sobre a sua bagagem.
Com as mãos operárias cheias de ônibus, eu entro no mar decidido a desenterrar todos os tesouros, principalmente os de valores pessoais e cívicos. Meus dias são arvores pequenas que aprenderam a dar frutos para manter-se viva. Tenho um pouco de arte na bagagem. Minha mãe colocou um fuzil em minhas mãos, em nome de todas as mães que não acreditam mais em nada, que desistiram de perseguir manhãs inexistentes, para colocar os olhos em dias reais. Eu ainda não desisti daquelas manhãs, mas aceitei o fuzil como complemento da minha esferográfica.
Assim partem os navios atrás de suas ilhas. Quero poder ser analisado pela luz de dias futuros, dias que tragam respeito aos valores pessoais e cívicos de quem, com certeza, já é por mim muito querido e próximo.
(ps: Esse texto é de 1982. Ano em que comecei a militar na política. Me chamou atenção como que a frase "minha mãe colocou um fuzil em minhas mãos" tem uma conotação totalmente diferente hoje. "Colocar um fuzil na mão" era fazer a revolução, hoje está associado a prática de crimes.)