VOO CAPENGA (cotidiano lírico)
Outro dia, sentei-me num banco de praça, no centro da cidade, para esperar, em tique-taque, a semana chegar ao fim. A tarde caía, e as pessoas se agitavam para recolher barracas, tomar lotações, fechar lojas etc. Era o céu se amenizando e a gente se agitando; era o tempo se adocicando e a gente se azedando; era, enfim, aquele baita contraste que nos enche de poesia e tristeza quando o dia vai virando noite.
Bem na minha frente havia um chafariz estagnado, cheio de água suja, repleta de girinos. Pensei: aí está um monumento adequado ao seu entorno: água suja para um mundo sujo; animais sem identidade (o infeliz do girino nem é peixe nem é sapo) para pessoas sem identidade.
Mais perto de mim, uma “quadrilha” de pombos ciscava sobras pelo chão. No meio deles havia um com um cordão preso aos pés. Dava para notá-lo de cara, porque o danado chamava atenção: andava todo desengonçado, já que o velho cordão lhe embaraçava os passos, e voava meio a pulso, já que o velho cordão lhe desajeitava o voo. Em virtude dessa desvantagem artificial, era o mais magrinho de todos, pois tinha de se contentar em comer sobras de sobras. Além disso, seus olhos eram esquivos e distantes.
Fixei a vista nele um tempo, e de repente meu coração cresceu, meus olhos se encheram de lágrimas. Fiquei todo encabulado, dramático, e tive de sair dali, para que não pensassem que eu era algum suicida urbano ou vítima de um desembesto de dor de cotovelo.
Fui a um boteco. Entrei apressado, nem vi nada direito. Pedi uma mesa nos fundos, depois do banheiro, já no quintal, debaixo de uma mangueira antiga, e entornei uma dose de cuba-libre. Pedi mais uma. Acendi um cigarro, pensando no diabo daquilo que me havia acontecido, na razão daquela súbita e intensa comoção…
Demorou, mas entendi: como aquela avezinha, sou eu, pobre cidadão da vida, e o cordão que trago atado aos pés é essa sensibilidade para com tudo, que não me deixa caminhar entre iguais sem tropeçar, e nem voar me deixa, e me emagrece das coisas da vida dos homens.
É isso, meu choro é isso... E essas palavras, se não param pelo cordão, se espalham pelas calçadas, marquises e telhados, feito as penas do pombo enganchado em si mesmo.