Supersticioso? Nunca

          De vez em quando, um urubu solitário pousa na cumeeira do prédio vizinho ao meu, na maltratada orla da Pituba, o meu bairro.
Agora mesmo, vejo-o de "asas abertas secando ao sol". Não está nem aí pro vaivém dos helicópteros que, em voos rasantes e repetidos, sobrevoam as encantadoras praias de Salvador, vigiando-as. 
          As repentinas visitas desse urubu, não vou negar, me inquietam e de certa forma me preocupam. 
          O urubu, todo mundo conhece esta história, está entre as aves de agouro como, com perfeição, lembra Luís da Câmara Cascudo, em Coisas que o povo diz.
          Vejam o que, a respeito, escreve o respeitado folclorista potiguar, a partir de opiniões por ele colhidas, nas quebradas do sertão nordestino.
- "O sertanejo diz que não é bom avistarmos o urubu trepado na cumeeira da casa, asas abertas, secando ao sol".
- "Espingarda que atira em urubu fica imprestável. O cano escorre água e a mira entorta de vez".
- "As almas que pecara muito se podem tornar em urubus."
- "Ninguém come carne de urubu por mais que seja a fome..."
- "Ave amaldiçoada, quando morre não apodrece, seca, e nem as formigas a querem".
          E narra esta estória: "Os indígenas do Rio Branco, em Uraricuera, contam que o urubu era branco. Nuá (Noé) mandou-o reconhecer se a terra estava enxuta depois do dilúvio.
O urubu entreteve-se comendo peixe podre e brincando com a lama. Ficou sujo e fedorento. Nuá condenou-o a conservar a cor e o mau cheiro que ainda hoje restam."
          Essa minha cisma diante dos malditos urubus vem dos meus tempos de menino, lá nos cafundós do inocente Ceará dos anos 1940.
No quintal de minha casa, todas as tardes, pousava um atrevido urubu. Quando menos se esperava, ele chegava batendo suas asas e cantando seu canto rouco, triste, desafinado, lúgubre...
          Pousava nos galhos do frondoso pé de cajú que, com a ajuda de um enorme pé de cajá, aenfeitava minha casa sertaneja. 
          Desconfiado, e ao mesmo tempo desafiador, ele ficava muitos minutos a me espiar.
Parecia saber que a qualquer instante poderia ser enxotado com o cabo-de-vassoura que ficava à minha disposição, nas proximidades do fogão a lenha. E minha mãe de olho nele!
          Pois não é que o cajueiro, que lhe servia de agasalho, foi aos pouco secando, secando, e, de repente, perdeu sua folhagem que dava uma aconchegante sombra? Seria a maldição do urubu?
          Sim, eu podia eu estar diante do que, muitos anos depois, eu viria a saber, lendo Luís da Câmara Cascudo?
          Em Aves e pássaros de agouro, pedaço do livro que citei acima, Cascudo anotou mais esta: "Árvore preferida para pouso de urubus perde as folhas."
          O que poderá acontecer com os moradores do prédio em cuja cumeeira, como disse, pousa aquele urubu, francamente não saberei dizer...
Qualquer dia desses, passarei por lá, e avisarei ao síndico. 
          Mas, em seguida, pedirei aos deuses que o tal urubu não resolva trocar de cumeeira. De súbito, num ato de vingança, ele escolhe a cobertura do meu prédio para suas visitas vespertinas.
          Como "ave amaldiçoada", ele vai tirar a tranquilidade desse velho cronista que, desde já, confessa, solenemente, não ser um sujeito supersticioso...

Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 24/08/2012
Reeditado em 26/08/2012
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