Michel

Aconteceu no ano de 1970, um pouco antes que eu completasse os vinte e dois anos de idade, o I Seminário de Folclore, na Universidade, promovido pela Secretaria da Educação e pelo Patrimônio Histórico de Sergipe. O mentor e organizador do evento foi o falecido e notável historiador sergipano, Luiz Antonio Barreto.

O auditório estava lotado, pessoas de todas as idades e, inclusive, os alunos do Curso de Letras Português-Inglês e Português-Francês. Havia muita expectativa em torno do tema, àquela época ainda olhado com alguma reserva por toda aquela classe burguesa. Mas havia também, um movimento nas coxias intelectuais em busca de novidades e resgate da cultura popular. O historiador mencionado era o líder desses movimentos, o expoente da cultura sergipana. Havia chegado de uma viagem e com ele trouxera amigos, intelectuais do seu porte.

A plateia foi se acomodando nas confortáveis poltronas do auditório. A palestra inaugural estava para ser proferida. E, para estar na moda, até quem virava o rosto para as manifestações populares, tratava de agora olhar de frente, ainda que um tanto enviesadamente. E eu que sempre fui metida a contestar padrões, ali estava para aprender sobre o folclore brasileiro e, especialmente, o das terras sergipanas.

Vestida em um tubinho estampado em verde piscina com ramagens brancas, mangas até o punho e curto, bem curtinho. Do lado de fora do vestido, duas pernas finas e muito inquietas. Vez por outra eu me levantava para puxar a borda da roupa porque mostrava mais do que deveria. Em uma dessas levantadas, olhei para os fundos do auditório e fui estendendo o olhar por todos os lados. Do lado direito, as portas abertas; do esquerdo, abertas estavam as grandes janelas. Naqueles tempos o ar que respirávamos era só o que vinha das bandas do Rio Sergipe. Numa dessas “fiscalizações” do ambiente, notei, de pé, junto a uma das portas, um belo rapaz que olhava na minha direção. Fiquei meio desconfiada porque julguei que observasse o meu senta/levanta e, por certo, me achava uma mal educada. Levantei e sentei outras vezes. Ele olhando. Eu girava o olhar em torno tentando conferir se era mesmo para mim que dirigia aqueles olhos de insistência. Era.

Veio o intervalo, vieram os comentários, a aceitação do tema, o debate. O rapaz lá. Estava recostado a um pequeno muro que servia para proteger as pessoas, pois estávamos no terceiro andar. Fiz que não vi e vendo. Estabeleci uma distância considerável e de tal sorte que não ficasse muito perto e nem muito longe do interessante moço. Ele se aproximou e tentou conversar com o pouco de português que sabia. A conversa ia tão boa que nem notamos que a sessão começava. Sentou-se ao meu lado. Daí em diante, eu nada ouvia do que dizia o palestrante. Era toda ouvidos para aquele francês. “Como era lindo o meu francês”.

Foi se emendando tudo e para onde eu me dirigia, vinha Michel. Vieram os passeios possíveis porque tudo era quase impossível tendo um pai atento como era o meu. Além do mais, o meu pai não queria saber se era um professor universitário, alguém inteiramente normal e bem referenciado. E logo diria uma palavra que não aprecio em uma frase assim: Minha filha, quem é este forasteiro?

Forasteiro ou não, naquela idade toda jovem desenvolvia artimanhas de enganar pais extremamente cuidadosos. Michel e eu passeávamos pelo Parque Teóphilo Dantas, pela Praça Fausto Cardoso e pela Rua João Pessoa. Tomávamos o famoso sorvete das sorveterias Iara e Cinelândia. As moças nos observavam verdes de inveja. Para todos os efeitos, em casa, eu estava em aulas ou realizando alguma pesquisa na Biblioteca Pública.

Foi da Avenida 13 de Julho que o francês mais se encantou. Quanta beleza via na paisagem do manguezal e das garças placidamente postadas por Deus na beirada do rio.

Sim, conversávamos muito, beijávamos também. Michel dizia sentir-se muito bem conversando comigo, que gostaria de ficar o tempo inteiro. Conversa vai, conversa vem, eis que Michel ousou mais um pouco e falou de assuntos, digamos, um tanto difíceis. Sem protocolos, ele perguntou se eu era ainda virgem. Hummmmmmmm, imaginem vocês por onde o francês queria passear. E como eu era virgem ele disse que não gostaria de ser o primeiro, pois desvirginar moças não era algo pelo que ansiasse, que considerava um ato brutal.

Continuamos namorando assim mesmo. E eu ouvia músicas francesas o dia inteiro, enlevada por aquele professor parisiense de quem até hoje não me esqueci.