Os quatro burocratas (cotidiano cômico)
Num bar respeitável (“bar respeitável” é pleonasmo ou contradição?) do centro de Recife, durante a “happy hour” (“happy hour” é ironia ou mau gosto?), há quatro burocratas numa mesa, que observo, enquanto meu chope chega.
Um deles, de gravata fechada, terno impecável, duro feito poste, bebe uísque. O uísque tem a exata proporção entre gelo e bebida, e o guardanapo por debaixo do copo está tão engomado quanto a camisa do burocrata. Ele o bebe com extrema precisão, e mantém a dose nem forte nem aguada, enquanto fala aos outros três:
- Sem dúvida, a gestão por resultados, pautada em rígido controle de padrões e formulários, é coisa irreversível. Cada coisa em seu lugar, cada funcionário com suas tarefas ma-te-ma-ti-ca-men-te descritas e monitoradas!
O segundo está de gravata frouxa, cabelo descuidado, barriga protuberante e desabotoada, deixando o umbigo à mostra. Bebe cerveja, e seu olhar tristonho não desgruda do copo, que segura com os cinco dedos, enquanto lastima:
- É dura essa vida. Muita despesa, muita pressão, estresse insuportável. É preciso aguentar. Júnior quer entrar na faculdade, e me disse que quer fazer Direito ou Administração. Além disso, o plano de saúde de mamãe subiu de novo! Barra pesada...
O terceiro está de gravata entreaberta, mas pronta pra apertar caso veja movimentações no bar que indiquem a chegada de um alto gestor, um chefe, alguém de elevado escalão. Com malícia nos olhos, passa a vista pelos três e, em tom confidencial, declara:
- O Gomes, do setor de logística, está dando resultados terríveis! É um posto estratégico, entendem? E a equipe dele é uma lástima! Deveríamos, pelo bem da empresa, minar esse flagelo, porque NÓS, certamente, faríamos mais jus àquelas vantagens e, claro, àquele trabalho importantíssimo! Aqui pra nós: soube que ele anda bebendo demais...
O quarto, de paletó amassado, tem um violão no colo, já está com a gravata amassada e enfiada no bolso da frente, e vai a meio caminho do pileque. Os três o encaram, inquisitivos, como esperando sua opinião. Ele salpica um solinho, e manda ver:
- “Dinheiro na mão é vendaval, é vendaval, na vida de um sonhador, de um sonhador! /Quanta gente aí se engana, e cai da cama com toda ilusão que sonhou...”
Sorrio. Meu chope chega. Olho pra rua. Vejo os carros engarrafados, os ônibus, com jeito bovino, e a gente, fazendo trilhas nas calçadas como formigas.
Volto aos quatro, que já aprofundaram o papo.
O impecável:
- Temos que organizar as finanças, da empresa e as pessoais, que a vida é dura se não há disciplina. Meu pé de meia, e minha aposentadoria privada já estão ma-te-ma-ti-ca-men-te planejados...
O triste:
- A vida é um castigo... Minhas taxas estão péssimas: colesterol, ferrentina, glicose... A pressão, então, nas alturas! Terei que me acostumar à vida sem sal...
O estrategista:
- Ambição saudável não é pecado! Precisamos, merecemos posições melhores, e pra isso, só unindo forças! O mundo é dos mais sabidos! Escutem o que digo, pois acho que estou falando pra estátuas!
O do violão:
- “Eu fico com a pureza da resposta das crianças: é a vida, é bonita e é bonita!”
Uma viatura passa, sirene nas alturas, e por um instante todo o bar, salvo os quatro burocratas, para pra ver. Rapidamente tudo cessa, e os ônibus, como bois, andam, e os carros, impacientes, buzinam, e a gente, metodicamente, caminha.
E na mesa os burocratas...
O estrategista:
- Quem vai pedir a conta?
O impecável, em gesto solene e elegante, levantando o indicador discretamente:
- Garçom...
O triste que, por estar distante e de olhos caídos, não viu o impecável pedir a conta, levanta o braço com extremo esforço, mas não tira a cara da mesa.
O do violão:
- “Eu vou beber “arrudiado” de mulher, devo e não nego, pago quando puder!”
Chega o garçom.
O impecável pega a comanda, saca um smartphone, calcula tudo e diz:
- Está tudo em ordem. Pra mim, que bebi uísque, são quarenta reais. Para vocês, trinta pra cada.
O triste saca seis notas de cinco do bolso e, com dor no coração, deixa-as debaixo de um copo.
O estrategista puxa a carteira e, com desconfiança contra os demais, abre-a cautelosamente, escondendo seu conteúdo. Tira uma nota de vinte e uma de dez, e as entrega diretamente nas mãos do impecável, murmurando:
- Esse bar é bom, mas deveríamos estar em outro patamar de luxo...
E o músico, deixando suas notas na mesa, taca:
- “Já vou embora, mas sei que vou voltar/Amor, não chora, se eu volto é pra ficar...”
Chegou também minha conta, e achei engraçado à beça quando passei o cartão magnético na maquineta, e ela acendeu a telinha, como dando boas novas, que li feito legendas debaixo dos quatro burocratas que se iam: TRANSAÇÃO ACEITA.
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