Bendito vício
Ainda bebês, aprendemos que o amor é uma coisa boa. A partir daí, sair desenhando coraçõezinhos por árvores, paredes, mesas e cadernos, é só uma questão de coordenação motora.
Depois de desenhar passamos a sentir e poetizar, afinal descobre-se, instintivamente, que o amor é algo que deveria se espalhar no ar. De preferência acondicionado em embalagem spray e distribuído gratuitamente por todos os cantos do planeta com o rótulo “AMOROSOL”.
Contudo, também muito cedo, como toda energia geradora do planeta que possui dois polos, - Ying e Yang; positivo e negativo; luz e sombra; bem e mal - descobrimos que o amor possui outra face, e ela não é nada bonita.
Nos primeiros anos de escola, boa parte da galerinha terá descoberto que amar pode ser ruim. A garotinha que amava o garotinho que só amava jogar futebol aprendeu que o amor pode ser burro e injusto. O garotinho que amava a garotinha que amava o seu amiguinho, descobriu que o amor, além de burro e injusto, tem gosto estragado e é cruel.
Desse jeito, muito precocemente, compreendemos que com exceção de papai, mamãe, vovô, vovó, titio, titia... o amor pode dar em nós, mas não necessariamente na pessoa por qual nos apaixonamos. Resumindo, muito antes de a vida nos cobrar responsabilidades já teremos sofrido e chorado por amor.
O inexplicável disto tudo é que a garotinha ignorada do primário continuou se apaixonando independentemente de já ter completado todos os graus de escolaridade possíveis. E o renomado mestre em engenharia nunca desistiu, ainda que tenha sido reprovado na matéria do amor, lá na quarta-série.
Isto significa que, mesmo sabendo que amar alguém sem laços consanguíneos é correr o risco de sofrer, perder a paz, as unhas, os cabelos, a fome, a saúde (física e mental)... a gente topa. Mais do que isto, a gente procura pelo amor nos cantinhos mais estreitos, que é onde ele costuma se esconder. Corre atrás tentando alcançá-lo em sua corrida descabelada, e tenta prendê-lo no aposento que decoramos especialmente para ele, no nosso coração.
Pessoas querem amar independentemente de que, para isso, precisem adulterar a própria identidade. Veem-se mulheres e homens (e até crianças!) mudando suas ideologias (política, social, espiritual), por causa do amor. Namoradas que passam a torcer pelo time dos namorados, com medo de virarem adversárias. Apaixonadas que repaginam o guarda-roupa e, automaticamente, o estilo de vestir. Raspam tatuagens, colocam mega hair e silicone. Jogam fora estojos de maquiagens repletos de batons vibrantes, cílios postiços e a velha personalidade.
Tive uma amiga na adolescência que era a própria personalização do camaleão. Se moldava com tanta naturalidade às peculiaridades e interesses do carinha que estava afim, que até pareciam almas gêmeas.Incorporava qualquer gênero: do hippie ao yuppie; da umbanda ao ateísmo; do clássico ao sertanejo; da intelectual à Amélia. Eu já não sabia qual delas era a minha amiga verdadeira, creio que nem ela. Até que se casou e não viveu feliz para sempre.
Alguma dúvida de que o amor é tirano?!
Tempos atrás, entretanto, encontrei com ela e o novo namorado nordestino. Enquanto nos abraçávamos com os olhos encharcados de saudade ela gritou em meu ouvido: “Oh Xente! Você não mudou nada!”. Nem você, eu pensei. Nem a mania de tentar o amor mais uma vez.
Tá vendo, o amor é uma droga! Vicia,consome, dilacera, fere, enlouquece e, até, mata.
Devíamos começar agora mesmo uma campanha contra ele. Internar todos os dependentes, recuperar os insanos, fazer manuais e cartilhas de como evitar o amor, precaver os pequeninos: “Não desenhe coração!”, confeccionar camisetas e cartazes educativos: “Amor? Tô fora!”.
Imagine só o resultado! Resguardaríamos a integridade emocional, garantiríamos a paz pessoal, protegeríamos o coração do flagelo eminente, e transformaríamos o mundo num caretão recalcado e infeliz! Topa?