.:. Os possantes, os grilos e os cupins .:.

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As ruas estão tranquilas. Aqui ou acolá se vê algum viandante[1].

Distraído, observo a passividade com que os carros se enfileiram, engalfinhando-se. Os donos, apressados, seguirão – neles – para casa ou a qualquer outro lugar da cidade. Os destinos, apesar de incertos e vários, foram catalisados pela ciência.

Um senhor de avançada idade se aproxima. Parece tratar-se do Dr. Jorge, o engenheiro mais requisitado da cidade. Isso mesmo. É o dono da Construtora Jorge & Cia, homem de muitas paixões. Uma delas: amor ao fusca!

– Pai, venha tomar café! – É o filho do Dr. Jorge. Depois do falecimento da esposa do engenheiro, o filho caçula é quem cuida do pai.

– É rapidinho, filho! Preciso ouvir o rufar de um dos meus amores antes de ir... – É a resposta.

Ele liga um dos fusquinhas da coleção de oito exemplares, modelo da década de sessenta – precisamente, era um autêntico fusquete 69! Dá na chave. Estronda nos arredores o típico e possante rufar das máquinas de outrora, hoje verdadeiros museus ambulantes, teimosos, a contrastar com as inovações automotivas.

– Filho! – Prossegue o engenheiro. – Existem novas versões para esse carro de operário, mas os atuais da mesma marca em nada se aproximam do poder histórico dos antepassados...

Que o digam nossos avós. Quantos segredos levaram para os túmulos, confidências cujas marcas se restauram no sonho da recordação. Nossos ascendentes deixaram saudades. E as declarações de amor repetidas vezes recebidas e recontadas por nossas avós, senhoras saudosas dos indeléveis[2] flertes, povoam nosso imaginário... Como testemunha, restaram os bancos dos veículos onde talvez esteja a origem de muitos de nós – os gemidos e as juras de amor foram silenciados pelo tempo; os sussurros se perderam; a vida segue ao som da buzina, causando enlevo[3].

“Fusquinha”, “Pretinha”, “Perebinha”... Por que tantos diminutivos? “Ah, se meu fusca falasse!” Ah, se a “Pretinha” não me pegasse... A fama deu origem a apelidos e rótulos. Sinal de sucesso. E nos cinemas cultivou-se a magia do toque de mãos sedentas, tímidas, esperando o fusca passar.

Os mesmos bancos onde nossos avós se agarraram, dentro do “Fusquinha”, serviram para aconselhamentos: era dentro das famosas “Pretinhas” que delinquentes presos recebiam amigáveis “corretivos”. Talvez, os mais moços estejam dando gargalhadas agora, mas é verdade; eram as Pretinhas (fuscas turbinados e caracterizados) que conduziam os marginais à delegacia. Duvido alguém daquela época não identificar ainda hoje o som da sirene da “Pretinha”!

Os militares eram outros; os facínoras[4] eram outros; a sociedade era outra. Temíamos quase nada. Íamos às tertúlias[5] e voltávamos tarde da noite, sozinhos. Saudade? Posso falar “que no meu tempo”... Bobagem! O tempo é o de agora e a vida é a que vivemos neste instante. O resto nos serve como pano de fundo para nossas recordações, experiências adquiridas depois dos erros e acertos, e nada mais.

O “possante” fusquinha sai em disparada, deixando poça de óleo queimado no chão – consequência do uso e do tempo. E nós, homens e mulheres, como máquinas (máquinas?), também temos nossos defeitos de tubulação. Seu Jorge parece enfurecido com o vazamento. Freia. Desce. Reflete um pouco. Bate na lataria do carro (tapinha amigável) como a confidenciar algo que apenas os dois conhecem. Sorri, maliciosamente, e entra. Destino: oficina.

Recordo-me dos grileiros. Homens astutos. Conhece a origem do termo, a etimologia dele? Contou-me um amigo que em remotos tempos, época onde havia muitas terras devolutas[6] em nosso país, muito mais que as de agora, os camponeses e os aventureiros falsificavam as datas dos documentos de posse das terras e, ao receberem os papéis da documentação, eles os colocavam em baús com grilos no interior. Os indefesos animais, ao caminharem e realizarem suas necessidades em cima dos papéis, davam às documentações aspecto de velhos, justificando visualmente a data. Folclore ou realidade? Seria esta mais uma marca da nossa colonização? Não assinaria nenhuma daquelas folhas em branco, mesmo se o desgaste estivesse relativizado o tempo que os grilos camuflavam... No tempo das pretinhas e fusquinhas, cabelo branco era sinal de respeito e nossos patriarcas honravam o calejar imposto pelas marcas da senilidade. Os grilos pelo menos não comiam os papéis! No máximo, carimbavam-nos com selos reais.

Nos quartéis onde dormiam as pretinhas, entretanto, os cupins trabalhavam vinte e quatro horas todos os dias. Essa é outra narrativa que me foi contada pelo mesmo amigo. Contou-me ele que, à época das pretinhas, muitos milicianos cujas férias já haviam sido gozadas, requeriam-nas novamente para fins de aposentadoria. Procuravam-se os boletins. Vasculhavam-se os assentamentos do militar e nada, nenhuma prova, não havia publicação. Gerava-se a celeuma[7]. Ouviam-se gritos de chefes atabalhoados[8] com o sumiço das documentações, mas a cartada final, dissipadora de todas as dúvidas, era irrepreensível:

– Chefe, será que o boletim dessa publicação não estava no meio daqueles que os cupins comeram?

– Isso mesmo, rapaz! Nada como um bom assessor! – Sentenciava o chefe, aliviado.

E assim, entre grilos e cupins, caminha a humanidade. E o militar, respaldado[9] pela Lei Cupim, garantia a aposentadoria indo para a reserva remunerada conforme mandam os ditames jurídicos.

Seu Jorge, coronel aposentado, graças à Lei Cupim, recebe o possante, agora sem vazamento, e dá vida ao trânsito. Olhares curiosos o espreitam ao longo do trajeto. Todos parecem presos ao ano de 1969.

Na esquina da rua onde o Coronel Jorge estaciona o carro, D. Leda, senhora recentemente viúva, suspira ao recordar os dias em que embaçou os vidros do banco traseiro do fusquinha, namorando o imaturo Jorge, tenente recém-formado do Exército Brasileiro. Eles se entreolham. Parecem reviver detalhes do que ocorrera na hora da missa, na pracinha, atrás da Igreja da Sé. Olham para o carro e sorriem com tenra cumplicidade, arrefecida pelo desacelerar do imperioso tempo. Despedem-se no olhar. Entram. E o fusquinha, impassível, vigia a rua, desobrigando-se de qualquer despercebido, saudoso e curioso olhar.

Crato-CE, 11 de setembro de 2008. 10h38min.

[1] Que ou a pessoa que viaja, especialmente a pé. Caminhante.

[2] Inapagáveis, inesquecíveis.

[3] Encanto, êxtase; maravilha; deleite; arroubo.

[4] Assassinos, criminosos.

[5] Reunião de amigos em festinhas.

[6] Terras vagas, desocupadas.

[7] Algazarra, confusão, tumulto.

[8] Atrapalhados.

[9] Apoiado.

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 22/08/2012
Reeditado em 22/08/2012
Código do texto: T3843264
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