Os verdadeiros deficientes
Eu não dirijo, eu ando a pé mesmo. Vou de ônibus... ou, vou de táxi, como diria uma musiquinha que só os mais antigos vão lembrar. E numa dessas andanças, uma distração me custou um pé quebrado - uma simples topada rápida numa tampa de bueiro saliente e mal colocada numa calçada pública me custou 45 dias andando de muleta - e três meses de reabilitação. Quando a gente passa por uma situação dessas, a mente da gente abre, a gente passa a pensar no transporte público, nas vias de acesso em geral, sob outro prisma: o prisma da pessoa que tem uma deficiência física.
Eu sofri com este problema apenas três meses... mas foi o suficiente para entender um pouco o drama que passam as pessoas que convivem com este tipo de situações todos os dias. Nunca havia reparado antes quão poucas calçadas em vias públicas temos em minha cidade, e como as poucas calçadas que temos são terrivelmente esburacadas e sem rebaixamento para facilitar o acesso do deficiente físico. E tem o problema do transporte público...
Existe a lei que obriga os ônibus das linhas de maior movimento a terem portas laterais amplas e elevadores de cadeiras de rodas, para possiblitar o transporte dos cadeirantes. Até aí parece um grande avanço social, haja vista agora as empresas possuirem este tipo de recurso. O problema é que: os elevadores nunca funcionam! Ninguém criou a lei da fiscalização das empresas de ônibus que estão oferecendo o recurso apropriadamente à população. E sem fiscalização o que acontece? As empresas simplesmente não fazem manutenção adequada do equipamento, ou pior, o que na maioria das vezes acontece, o próprio motorista apresenta esta desculpa pelo simples fato de não querer ter trabalho de trazer a bordo a pessoa com deficiência. Com certeza gastam-se alguns minutos a mais no momento de trazer o passageiro a bordo e descê-lo, isso atrasa a viagem, o motorista apenas faz de conta que não vê o passageiro na cadeira de rodas no ponto dando o sinal, e passa direto...
Nos últimos dias presenciei duas situações que me motivaram a escrever estas linhas. Fatos do cotidiano de pessoas que talvez eu não veja novamente, mas que me marcaram profundamente, talvez para o resto da minha vida.
O primeiro, um rapaz. Jovem, bem vestido, sozinho, no ponto de ônibus há pelo menos meia hora, tentava em vão o transporte. Como já disse, a maioria dos ônibus nem parava, os que paravam, alegavam defeito no funcionamento do elevador. O rapaz desceu da calçada ao asfalto, pois a calçada não oferecia o rebaixamento, e esse era o unico meio de acesso aos ônibus. Correndo risco de ser atropelado, ele perigosamente ia e vinha tentando um e outro e a resposta sempre negativa. Observei aquela cena alguns minutos e me ofereci para ajudar.
Pedi que ele ficasse de lado, e parei um ônibus para ele. Me pendurei na porta, para impedir a saída do veículo. O motorista alegou como sempre, o mal funcionamento do elevador. Falei para ele que o ônibus só sairia dali quando ele desse um jeito de colocar o rapaz a bordo, pois o mesmo estava recebendo esta mesma desculpa de todos há mais de meia hora. O motorista então disse que o único jeito seria conseguirmos voluntários para levantar a cadeira de rodas com o rapaz e colocá-lo a bordo nós mesmos, pois ele não poderia fazer mais nada.
Os voluntários apareceram, graças à Deus por isso, e somente assim o rapaz pode embarcar... não sem antes dar a volta no ônibus pelo meio do asfalto e do trânsito para poder chegar à porta da frente do veículo, já que a porta do meio - a do elevador - nem sequer abria!
Deprimente!
Ontem, mais um caso. Uma jovem senhora na cadeira de rodas, acompanhada, esperava pacientemente que o elevador do ônibus descesse até o solo para que ela pudesse subir ao veículo. Após cinco minutos de tentativas frustradas, o motorista tentando em vão que o equipamento funcionasse, os passageiros que estavam no ônibus começaram a reclamar do atraso devido ao problema e decidiram então abandonar o veículo e pegar um outro da mesma linha que vinha logo atrás. Para minha surpresa e total indignação, assisti quase 40 pessoas descerem daquele ônibus reclamando, mas ninguém sequer olhou no rosto daquela senhora que só tentava exercer o seu direito de ir e vir, garantido pela lei, sendo ela uma cidadã como qualquer outra que paga os seus impostos, e sim, deficiente...Parecia naquele momento que aqueles passageiros estavam irados com a pessoa que estava na cadeira de rodas...como se ela tivesse planejado atrasar a viagem daquelas 40 pessoas...como se ela tivesse culpa do equipamento não funcionar...
Precisamos refletir. Onde nós como seres humanos que não respeitamos direitos alheios podemos nos encaixar em tudo isso? Eu me incluo, porque, se eu não fizer nada em relação aos fatos dos quais tomei conhecimento, estou sendo tão conivente com o erro como aqueles que o praticam. Eu, continuo andando a pé pelas ruas e calçadas esburacadas, continuo a depender do transporte público tanto quanto antes, meu pé não está mais quebrado, mas minha consciência em relação a tudo isso, sim, e outras tampas de bueiro continuam lá, nos caminhos de muitos tantos desatentos e desavisados... tem que haver uma solução...seria bom avaliarmos hoje, quem são os verdadeiros deficientes.
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Um abraço!