Quando as minhas pernas não puderem mais aguentar...

QUANDO AS MINHAS PERNAS NÃO PUDEREM MAIS AGUENTAR…

Cada vez que encontro com minha mãe, observo nela, traços lentos e graduais de envelhecimento. A pele do seu rosto, porém, é sempre macia, viçosa, rosada. Seu olhar encontra-se um pouco decaído e, às vezes olha como, se estivesse vago no ar, com pensamentos absortos, mas o brilho neles permanece acompanhado de ares de meninice. Brincalhona e vaidosa como sempre... Os lampejos, na falta de memória, têm sido frequentes nas poucas horas em que desfruto de sua presença, como os de hoje. São cíclicos... No geral tem saúde maravilhosa. Percebo que o cansaço que os anos nos trás modifica hábitos. O soutien, este velho amigo, ela já não consegue vestir sozinha. Lembrei agora desse primeiro sinal, de perda de controle dela, dado para mim, no ano passado, quando em alguma festa na casa de minha irmã, ela após tomar seu banho chamou-me. Apressei-me em atender de pronto o seu pedido, achando tratar-se de algum outro tipo de ajuda. Surpresa para mim: Pediu-me para atacar-lhe o soutien, tarefa esta, que antes, fazia sozinha. Enquanto atendia silenciosa e pensativamente o seu pedido, fiquei a pensar sobre seu envelhecimento e o de todos nós, um pouquinho a cada dia; o meu também, afinal, um dia também serei idosa. Observei-lhe os sinais nas costas; alguns foram novos para mim; não os havia contabilizado antes...todos os dias parecem surgir coisas novas em nosso corpo...as rugas, aquela pele ressecada, aquela flacidez...olho-me no espelho e digo: nossa essa apareceu de ontem pra hoje...corre a colocar mais antirrugas...é a busca pela eternidade jovial...ora essa Fátima, mas envelhecer deve ser bom também...quero envelhecer escrevendo muito, lendo muito, e contando muitas, muitas histórias/estórias numa nostálgica cadeira de balanço. Quantas estórias não devem estar armazenadas em tantas cadeiras de balanço pelo mundo afora...

Freud pedia ao universo para nunca perder a visão nem a capacidade de pensar. Digo o mesmo...

Hoje, ao visitá-la, praticamente um ano depois a cena se repetiu e deve ser assim todos os dias com minhas outras duas irmãs e um dos irmãos que residem com ela. Durante a novela interrogou-me três vezes sobre o nome do mesmo personagem. Estava claro pra mim o sinal de mais uma etapa do envelhecer... Logo ela, tão excelente de memória ao relembrar sempre com tanta clareza, frescor e riqueza de detalhes, fatos de sua vida, meninice e mocidade. Em família, todos costumam dizer que, nesse aspecto “puxei” a ela, herdeira na família desse dom e dessa habilidade. Engraçado! Não me lembro de ver minha mãe chorar... É raro vê-la chorar... Até no enterro de meu pai se comportou sem exageros de emoção. A quem puxei então? Já que sou tão chorona... ao meu pai certamente. Algumas vezes até julguei-a um pouco insensível com a vida e com os nossos problemas. Se chorar, pensei eu, deve ser de maneira silenciosa, mas acredito que não chora, deve se preocupar, porém não demonstra muito. É sempre contida com as emoções; mesmo quando me separei, quando alguém na família adoeceu, quando um filho perdeu emprego.... sempre, sempre equilibrada.

E eu? Um dia eu também terei memória? Algum dia eu também terei dificuldade e lentidão no andar, no falar? Terei a pressa que hoje tenho? Quando e como será, quando as minhas pernas não puderem mais aguentar o peso do corpo junto com minha história? Pra quem ficará minha história? Aprendi ao longo desses poucos quarenta anos que o bom do ser humano é ser reconhecido pelas suas obras; então meu Deus preciso deixar logo boas obras, quero ser lembrada por elas; ajude-me a fazê-las...tenho pressa...os anos passam rápido...corre Fátima...

Terei eu alguém para cuidar de mim com amor e paciência assim como fazemos com nossa mamãe, nos derradeiros anos de minha vida? Calma Fátima! Você aprendeu também que o ontem é história, o amanhã é mistério e que o hoje é dádiva. Então Fátima, aproveita o hoje pra ir construindo um amanhã luminoso. Os que ficarem entenderão por certo, o grande e maravilhoso mistério que é a vida.

Algumas vezes pensei: - Se meus irmãos, por vezes, mesmo com todo carinho que tem com ela se impacientam com certas atitudes dela, como será, à medida que seu envelhecer aumentar? (...) Claro que reconheço sinais de beleza no envelhecer, eu própria me acho mais bonita hoje que há alguns anos atrás. Pra mim, o melhor presente do envelhecer é ter mais sabedoria. Os sinais físicos, apesar de dolorosos em alguns aspectos, como as rugas, flacidez, doenças devem ser encarados como naturais do ciclo da vida, sem tristezas e sim com cuidados. Pena a velhice no Brasil, não ter cuidados. Quando vejo os olhares desprotegidos e abandonados e acriançados dos idosos nas ruas, nos hospitais, nas praças, no mercado, meu coração se revolta e se entristece... Todos nós envelheceremos um dia; ficaremos com um olhar mais cansado e acriançado, mãos mais frágeis e magras, mas ainda com muito a dar para aqueles que nos rodeiam, seremos úteis! Cada um com suas potencialidades. Penso que o idoso envelhece quando se esquece dessa potencialidade e deixa de descobrir novas. Envelhecemos ‘também quando deixamos de cantar, mesmo que seja debaixo do chuveiro. À medida que envelhecemos, cantamos menos. Observem os jovens! Como eles cantam por qualquer coisa. Se deixamos de cantar ao longo da vida, é porque ela foi se tornando áspera. A melodia do frescor da vida foi esvaindo-se em nossos corações. Cantarolar é um bom remédio, brincar, fazer caretas, dançar e exercermos, mesmo de maneira mais limitada uma atividade são boas receitas. Acho ainda que tem outro bom remédio: Chegar na velhice com boas obras e um coração sem rancor, sem mágoa, com gratidão, muita, muita gratidão...

Quanto a minha mãe, já não encontro mais ela, sentada na cadeira de balanço lendo algum livro de poesia entre as mãos. Já chorei algumas vezes por isso. Mesmo algum outro livro, é raro. A Bíblia, que bom, ainda é frequente, mas nunca nos diz o que leu ou o que entendeu. Lê e em seguida segue para seu crochê. O livro agora foi substituído pela companhia da televisão. Ainda lê, mesmo sem o uso de óculos, mas ler menos. Ah! Como a apreciava lendo os livros em tom altivo e melodia poética; até uma notícia no jornal, lia com ares de cordel e sorríamos muito. Ouvir a queda do presidente Figueiredo e o anúncio das eleições diretas em sua leitura, foi de uma suavidade engraçada; levou toques de cantiga... Muitas vezes fui crítica dura e ainda sou dos programas televisivos, mas vejo hoje que ela tem também seu lado bom de distrair tantos idosos solitários pelo mundo afora que, por companhia só tem ela ou o rádio.

Pra alívio e alegria do meu coração, minha mãe tem o carinho e amor de todos seus filhos que mesmo quando não comparecem, ligam religiosamente. Acho que eu tenho sido a filha mais ausente de todas. Pra repor essa ausência, apressei-me hoje em ajudá-la a arrumar sua cama com o mosquiteiro no ritual de todas as noites. Nem isso cheguei a fazer! Que filha incompetente!! Não sabe armar um mosquiteiro, mas sabe usar um microscópio. Que vergonha Fátima...!!! CHOREI nesse momento sem ela perceber. Olhando para ela em sua cama, percebi o quanto me distanciei muito cedo, do seu convívio, de suas estórias. Do seu envelhecer... Chorei por isso. Com o carinho e a presteza de sempre, a outra irmã o fez antes de mim. Senti-me um pouco frustrada. Disfarcei! Como se, naquele momento tivesse perdido um pouco minha identidade. Mas, para recompensá-la beijei-lhe a face acompanhado de um :

- boa noite minha mãezinha

- Durma bem Mãe Dora!

-Você vai dormir aqui hoje filha! Indagou novamente, acho que pela 5ª vez no dia.

-Sim minha mãe, irei. Fique tranquila! Estarei aqui com a senhora. Portanto, disse isso também pela quinta vez.

Os papeis pareciam ter se invertido naquele momento. Ela, a criança pedindo-me para ser acalentada, enchendo-a de carinho, de mimos e de proteção.

Foi bom também poder ficar com ela hoje a só, preparando alguns pães para ela amanteigá-los. Ouvíamos um belo fado na rádio AM. Era final de tarde. Aproveitei e pedi para ela declamar alguma poesia, como gostava de fazer. Disse-me, porém, que já não lembrava mais como antes. Talvez só alguns mesmos versinhos de criança. Enquanto o cheirinho de pão assado exalava na cozinha, ela na sua limitação de memória literária conseguiu, pra minha felicidade, ensaiar alguns poucos versos de Casimiro de Abreu: - “Ai que saudades que tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida que os anos não trazem mais. Que amor, que sonhos, que flores naquelas tardes fagueiras à sombra das bananeiras, debaixo dos laranjais!

Senhor tende piedade dos idosos, em especial daqueles abandonados, essa hora, no leito de uma cama.

Tende piedade, Senhor, da solidão dos idosos.

Desperte Senhor, nos corações dos filhos ingratos, a chama do amor por seus pais e acalentai Oh Deus, nos nossos corações, mais paciência para com eles.

E, quanto a mim, Senhor, mesmo quando meu corpo não puder mais aguentar, e minhas pernas começarem a fraquejar que, ao menos me seja dada a chance, de resguardar em mim ainda muita poesia, e de cabelos brancos e olhar cansado eu possa com ela sorrir sempre pra vida e olhar continuamente, com gratidão para a beleza desta com seus ciclos e seus mistérios em todos os seres. AMÉM!!

Ah! Mas qual a frase que direi no meu último suspiro?

Acho que direi apenas: Obrigada Deus pela vida que me destes.

Mas se privilégio e forças eu ainda tiver, imitarei o gesto de Fernando Pessoa a dizer:

É talvez hoje o último dia de minha vida.

Saudei o sol, levantando a mão direita,

Mas não o saudei, dizendo-lhe ADEUS.

Fiz sinal sim de gostar de o ver ainda. Mais nada.

Madrugada de 16 de junho de 2006 (01:00h), na casa de minha mãe.

Fátima Arar
Enviado por Fátima Arar em 21/08/2012
Reeditado em 12/12/2020
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