Por uma “nova Roma?
Por uma “nova Roma?
Lúcio Alves de Barros*
Em tempos que a TV entra em nossa casa e mostra com todas as tintas sujas o vergonhoso jogo do mensalão, sempre vem em minha memória a pergunta simples, clara e honesta de Darcy Ribeiro (1922-1997): “por que o Brasil ainda não deu certo?” O seu último livro, “O povo brasileiro”(Companhia das Letras, 2006) é uma descrição apurada de acontecimentos que feriram a ferro e fogo essa tão bela terra chamada Brasil. Na verdade em toda obra do autor - gigantesca e mágica - encontramos um país que se sustenta na luta, na violência, nas guerras do dia a dia, em meio a uma miscigenação materializada em um racismo perverso e no sangue de tantos índios e negros que selaram esse país transformando-o em um uma espécie única de terra e de povo.
E não é que a coisa continua feia e a pergunta atual? Darcy Ribeiro, um realista e romântico inveterado, não deixa de criticar a velha, doce e histórica desigualdade social, baseada em uma “democracia racial” e na possibilidade da construção de um grande país. Para ele, inclusive, “uma nova Roma”. “Uma Roma tardia e tropical”, uma coisa utópica que enche os olhos de quem lê, mas que causa agonia e mal-estar para aqueles mais avisados que sabem que a ralé brasileira está viva, ainda de pé, mas na realidade entregue a uma sonolência crítica em relação aos rumos que tomam este país aqui e acolá.
De todo modo, o otimismo de Darcy Ribeiro é contagiante. Ele fala de uma unidade nacional, de uma cultura brasileira, de um tecido social único em torno de sociabilidades que se confundem e se consolidam em um curioso mosaico cultural de cores, dores e amores. Uma etnia brasileira, uma nova identidade étnico-racial, a de brasileiros em formação que nos retiraria desta “ninguendade” que nos causa insegurança, pavor e terror. É claro que no Brasil o antropólogo não deixa de mostrar que algumas regiões se formaram a partir de símbolos multiétnicos, mas nada que inviabilizasse a etnia brasileira. Uma etnia única, singular, tolerante e, na mais romântica reflexão, “maravilhosa”. Um verdadeiro paraíso para os que estão por vir. Suas palavras em relação ao nosso mosaico não deixa dúvida: "Por essas vias plasmaram historicamente diversos modos rústicos de ser brasileiros, que permitem distingui-los, hoje como 'sertanejos' do Nordeste, 'caboclos' da Amazônia, 'crioulous' do litoral, 'caipiras' do Sudeste e Centro do país, 'gaúchos' das campanhas sulinas, além de ítalo-brasileiros, nipobrasileiros etc. Todos eles muito mais marcados pelo que têm de comum como brasileiros do que pelas diferenças devidas a adaptações regionais ou funcionais, ou de miscigenação e aculturação que emprestam fisionomia própria a uma outra parcela da população”.
Percebe-se nestas palavras como o autor monta e entende o Brasil como cultura. “Um povo, até hoje em ser, impedido de sê-lo”. Um território à deriva, com grande força para se unificar, crescer, liderar a América Latina e se consolidar como potência. Mas o que fazer com a mais que secular e cruel desigualdade social, a precariedade nas relações de trabalho, sofrimento dos que nada tem e a exploração pura e simples do outro que se acostumou com os privilégios, os latifúndios, a hierarquização das relações e concentração de poder nas elites? O otimismo de Darcy Ribeiro incomoda. Apesar de nossa "urbanização caótica" fomos em frente. Criamos um país periférico economicamente, ridículo socialmente e vergonhoso politicamente. Nossa democracia é uma falácia e Darcy Ribeiro ainda acredita em uma “brasilidade” como identidade reforçando a ideia da emergência - em longo prazo - de uma "nova Roma". Nova, pois é resultado das "dores do parto" provenientes da ganância do branco com o sangue do índio e do negro. Um nascimento singular que deu ao mundo a futura potência almejada por Simon Bolívar.
Darcy Ribeiro faleceu em 1997. Deixou uma obra impressionante e de leitura obrigatória para quem quer conhecer o Brasil. Contudo, e desculpem o desabafo, não é possível acreditar em sua utopia. O antropólogo mineiro até tentou. Atuou na “conscientização” dos menos favorecidos e gritou aos quatro cantos da necessidade da educação como política de governo. Talvez, e propositadamente, não tratou de relatar que entre a “educação ideal” e a "real" a distância é enorme. Temos milhões de analfabetos (cerca de 14 milhões e mais 35 milhões de analfabetos funcionais), outros milhões que não tem sequer acesso a água tratada. Mais que isso, quase metade dos brasileiros não possuem carteira assinada e o desemprego tornou-se natural. Resumindo o argumento, imaginem se fôssemos comentar sobre o direito e o acesso à justiça, a uma saúde ou mesmo a uma vida digna e segura sem o sofrimento e a humilhação diária?
Perdoe-me antropólogo! Neste país tudo é para depois ou em longo prazo. Mas como a frase de Keynes, “a longo prazo eu já morri”. Na realidade nos acostumamos a deixar as coisas acontecerem para depois tomarmos providências. E pasmem! Poucos se responsabilizam pelas consequências. Mas muitos - muitos mesmo - desprezam o dinheiro público, chutam as instituições, buscam privilégios e desrespeitam a alteridade que faz parte deste mosaico cultural delineado em sua obra. É impossível a crença em uma “nova Roma” com professores recebendo salários menores do que juízes, promotores e policiais. É inacreditável um país que deifica autoridades corruptas e que os exalta como celebridades e muito menos em uma nação na qual o outro é moeda de troca e fonte inesgotável de chantagens, maldades, desumanidades, leviandades...
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*- Professor da Faculdade de Educação (FAE/BH/UEMG)