ZÔTE, O SENHOR DOS ANEIS
Os tipos populares de cada cidade são personagens que permanecem vivos na historia, quer pela figura diferenciada, quer pelos jargões famosos, quer pelos trejeitos inesquecíveis. Este é o caso do menino Zôte que se tornou homem em corpo de menino e alma de menino em corpo de mímico. Lembro-me dele ainda menino, surdo-mudo, maltratado, jogado na vida sem poder vive-la, sem carinho, sem lar, abrindo o seu enorme coração para fazer a alegria de todos que dele se acercavam.
O tempo foi passando. A vida foi marcando a sua desventura e o dia a dia foi transformando-o em rapaz e diminuindo um pouco a sua vivacidade e energia. Seus olhos tornaram-se enigmáticos, sua pele mais amarelada, opada, estranhamente transparente, e da sua boca muda, apenas alguns sons, como uma linguagem nórdica, se assemelhavam a palavras que bem poucos entendiam. Seu corpo continuou de criança, pequenino, mirrado, medindo cerca de um metro e trinta. Na palidez do seu rosto estava a marca da subnutrição, a dor da tristeza e o desapontamento de uma solidão infinda, absoluta daqueles que rodeados por muitos, vivem tão sós. Nunca recebeu um beijo de mãe, nunca recebeu conselhos de pai, nunca ninguém leu para ele as estórias da carochinha e ele nunca pediu: - Pai, conta uma estória para mim.
Se Deus proibiu-lhe de ouvir e falar ofereceu-lhe uma aguçada percepção e ele copiava com incrível perfeição o andar, os gestos e os trejeitos de pessoas que ele considerava dignas de serem imitadas. Era assim com Bibi de Garrido, surdo que nem ele, Alípio Santana, do qual ele mexia orelhas, Zeca dois Velhos e a sua forma de sentar sobre as pernas, Carlos Pinheiro, mostrando o muque e tantos outros que não escapavam à sua sagaz observação. Como um caricaturista ele ampliava os gestos de forma a não deixar dúvidas de quem estava imitando. A arte da mímica começava a se desenvolver no pobre menino Zôte e se desenvolveu cada vez mais de forma hilária e requisitada por todos.
Do que ele mais gostava era de ficar no consultório médico do Dr. Orlando Pereira que sempre ofereceu ao pequeno mímico um pouco do afeto que tanto ansiava, misturado aos remédios e tratamentos da sua saúde. Do consultório para a Pérgula, da Pérgula para o Bar Badinho, do Bar Badinho, para a porta do cinema, sempre imitando alguém. E o tempo continuava passando, envelhecendo a idade e os sonhos de Zôte. Mas ele não envelhecia...
Eu acho que ele é um Elfo. A cor de um pálido transparente, os olhos perspicazes, de uma cor indefinida e uma luz esquisita que ele fazia jorrar nas imitações jocosas, suas mãos, magras e longas e, se não era tão belo como dizem ser os Elfos, feio também não era. Será que ele era mudo ou a sua linguagem incompreensível não seria um dialeto da língua élfica?! Eu não sei se ele morreu, nem quero saber. Certa vez ausentei-me da cidade por dois anos e na minha volta, não encontrei o Zôte. Perguntei por ele a algumas pessoas e não encontrei resposta. Deixei pra lá. Nunca mais quis saber do paradeiro de Zôte. Melhor para mim é continuar acreditando que Zôte é um Elfo da Luz, belo, luminoso, semidivino semelhante às imagens literárias das fadas ou das ninfas, que ele nem precisava conhecer porque ele fazia parte delas. Nunca mais o vi. Acho que nunca mais o verei, porque como todos os Elfos ele partiu da terra-media para Aman, o continente dos Valar, que foi removido do círculo do mundo e alcance dos mortais. Eterre Namárië. Kvert Fricai Zôte.