A Casa Onde Nasci

O mundo estava em guerra. Até o Brasil havia sido incluído. Época de intranquilidade e de pavor para os povos de setenta e duas nações que tiveram a infelicidade de se envolver. A guerra teve início em 1º de setembro de 1939 e se estendeu por um período de seis anos, terminando em 02 de setembro de 1945. Na pequena cidade do interior do Ceará, minha querida Massapé, as notícias chegavam através de jornais ou de algum rádio que era privilégio de determinadas pessoas.

Nesse período, um tio meu, irmão de meu pai, saíra a passeio do Ceará para a Bahia, chegando a falecer, quando um submarino afundou o navio em que viajava. Seu nome está colocado no monumento aos pracinhas da guerra, no Rio de Janeiro, como se fosse um combatente. Anos depois, conheci um conterrâneo que fora convocado para os campos de combate e lá foi preso, confundido com um alemão, pela sua fisionomia semelhante à do gringo. Como consequência, ficou sofrendo de um trauma. De volta à casa dos pais, por ocasião das paradas cívicas realizadas pelos colégios, desfilava com garbo entre os alunos, fazia continência à Bandeira no momento do Hino Nacional, como se estivesse em campo de guerra. Fazia-o também em qualquer lugar onde ouvisse o toque de uma corneta ou de qualquer hino patriótico. Não falava, não se comunicava com as pessoas, sorria à toa, dentro de um mundo que só ele entendia. O que faz a ambição e o egoísmo do homem!

Nasci em Massapé, quando a guerra estava começando. Vim ao mundo pelas mãos de Dª Naninha, senhora de muito conceito em minha cidade. Quando, por curiosidade infantil, perguntava de onde tinha vindo, minha mãe respondia com evasivas, que uma cegonha me trouxera no bico. Cheguei a pensar que havia sido projetada por um canhão da guerra e jogada, por acaso, na rua detrás da Igreja Matriz, no quintal da casa vizinha ao atual Hotel, a casa onde nasci. Que pensamento! Minha tia falava da guerra, dos canhões, dos soldados e de muitas coisas ruins que ela causava. Ainda hoje, tenho “trauma de avião”, porque sempre que ouvia um barulho no ar, minha tia dizia: _ “Vem ver o avião da guerra!”. E corríamos para a janela, apavoradas!

A casa onde nasci era alugada. Pequena, estilo simples. Tinha piso e telhado de alvenaria; caibros de madeira, roliços e incertos; as ripas de madeira cerrada; as linhas de sustentação eram de tronco de carnaubeira ao natural. Lembro de uma saleta na entrada, uma sala de visitas conjugada a dois quartos também conjugados, uma sala de jantar e uma cozinha. Nesta, um grande balcão de alvenaria com uma chapa de ferro contendo alguns buracos, formavam o fogão que cozinhava à base de gravetos de lenha e um pouco de querosene ou álcool para acender o fogo. Ao ver minha mãe, logo muito cedo, cortar gravetos com um facão, lutando para conseguir o fogo com a ajuda de um abano feito de palhas de carnaúba, sentia pena, mas como só tinha cinco aninhos, não podia ajudar. O telhado ficava coberto por uma fuligem preta, até mesmo as teias de aranhas penduradas no teto, tomavam a triste cor e me causavam muito medo. Quando minha tia passava um espanador para limpar, formava uma cabeça preta no alto da vara e corria para me pegar, dizendo que era a Cruviana (ainda hoje não sei o que é), querendo puxar os meus cabelos. Nossa! Como isso me apavorava! As panelas usadas para cozinhar os alimentos tinham que ser de cerâmica; ficavam pretinhas e brilhantes como se fossem pintadas com tinta a óleo.

Ao lado do fogão, havia um pilão de madeira com duas bocas para moer café, milho ou outro cereal. Mais adiante um forno de alvenaria, de forma arredondada, tendo uma abertura para colocar os alimentos que iriam ser assados e outra, mais em baixo, para colocar os tições de fogo. Tudo era preto e feio, mesmo tendo uma chaminé no fim da chapa de ferro, que soltava a fumaça para fora da casa. Nos meus desenhos infantis, sempre que desenhava uma casa, não deixava de colocar a chaminé, realidade bastante primitiva com que tivemos de conviver até o final dos anos cinqüenta, quando apareceram os primeiros fogões a gás.

Era o quintal o meu lugar predileto. Não era grande, mas havia uma pitombeira que nos dava frutinhos deliciosos e uma sombra agradável, permitindo-me passar, ali, uma boa parte do dia, brincando com minhas bonecas de pano feitas pela Chiquinha Diogo, uma senhora que vendia puxas de rapadura, rosquinhas e broas feitas de goma. Todos os dias, um macaquinho amarelado vinha brincar na árvore, saltando de galho em galho, comendo pitombas e ficando zangado quando percebia minhas caretas para ele. Era divertido! Ainda lembro as caretas que me mandava de retorno. Ainda no quintal, havia uma coisa que, além de feia, era anti-higiênica: um quartinho sem teto e sem porta para fechar, com algumas madeiras grossas, dispostas em paralelo, meio metro acima do piso. A um canto, um grande buraco recebia os detritos quando feita a limpeza diária do quartinho. Que coisa deprimente!

Nessa casa, nasceram todos os meus irmãos; sou a segunda dentre dois que voaram para os céus ainda bebês e dois que estão vivos, graças a Deus. Foi também ali que tive minha primeira visão espiritual: Estava brincando na saleta que já mencionei, quando, de repente, as telhas se abriram e um ancião com uma longa barba e cabelos brancos, envolto em um imenso feixe de luz, entrou e ficou suspenso no teto. Não o vi completo. Era somente a parte superior do corpo. Tinha os braços abertos como quem quer abraçar. A fisionomia, amável e serena. Olhei-o sem medo. A princípio, pensei ser o Papai Noel, porém suas vestes tinham a cor cinza, não usava gorro, nem levava um saco de brinquedos. Sempre que lembro dele, procuro associar sua imagem à de alguém em fotos antigas ou em estampas de santos, mas não cheguei a nenhuma semelhança. Quem seria?

Uma doce lembrança que, ainda hoje me faz feliz, foi quando ganhei a minha primeira boneca que tinha os olhos azuis e os cabelos louros; chorava e dormia. Fora presente de minha madrinha de crisma Suzana, irmã do Padre Bonfim, o vigário. Até então, só possuía bruxinhas de pano. Minhas primeiras amigas moravam ali perto, na mesma praça e de vez em quando nos encontrávamos. Chamavam-se: Benedita, Maria do Carmo e Marta. As duas primeiras eram morenas e cacheadas como eu, a outra era branquinha e loira.

Ainda nessa casa, senti a sordidez do sofrimento bater à porta do meu coração pela primeira vez. Um dos motivos, era a despedida de meu pai todas as vezes que saía para viajar, montado em um cavalo, conduzindo um combóio de representações de tecidos de uma firma comercial de minha cidade. Essas viagens demoravam, às vezes, um mês ou mais, e isso deixava um vazio em meu coração de criança, uma espécie de saudade que não sabia explicar.

Morei nessa casa durante todo o período da guerra. De lá, saímos para outra na Praça de São Francisco, em 1945, quando terminou a maior catástrofe provocada pelo homem em toda a sua longa história, a Segunda Guerra Mundial.

Sempre que visito minha cidade, não deixo de passar alguns minutos em frente à pequenina casa, entregando-me a estas lembranças que, mesmo depois de meio século, continuam vivas na minha memória, como se tudo tivesse ocorrido ontem.

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Maria de Jesus Fortaleza, .19/08/2012....

Maria de Jesus
Enviado por Maria de Jesus em 19/08/2012
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