Às vezes ela não me conhece,

ou quase sempre. Não porque não quer. Talvez porque não possa. A gente se esquece dos sonhos ou da maior parte deles porque se sonhar o mesmo sonho, vai ser novidade mesmo assim. Sonho nunca é rotina. Então eu penso que é por isso que ela não me conhece. Não tem nada a ver com a distância, juro. Porque a sinto aqui perto, respirando fundo pra manter a calma e não me fazer mal. Eu sempre fui uma pergunta retórica, não tem o que descobrir disso. Mas ela ainda não me conhece. Não porque não tentei nem porque não quero. E eu penso que assim é melhor, não se conhecendo. Porque se eu for vê-la passando pela rua, não vou precisar pensar se converso com ela ou finjo que não vi. Afinal, não a conheço mesmo. Ela seria como uma flor que não pode ter nome nem cheiro, você precisa imaginar todos os traços mentalmente e fica de coração apertadinho por não ser verdade. Só que você a sentiu, sim. Porque pra sentir é diferente, não precisa nem de toque. Só existiu pra mim. Ou então ela seria um caderno novo que nunca perde o cheiro da loja, mas todo mundo diz que nunca percebeu cheiro nenhum. E eu ficaria louco, eu ficaria louco com cada mínimo detalhe que invento. Talvez por isso ela não me conheça. Mas não conhecer não significa que não falo com ela. Significa que mesmo falando, eu sou alguma coisa que não cabe em contexto algum. Como levar uma bala perdida, uma visita em plena madrugada, um telefonema de cobrança. Mas eu ficaria pra sempre. De alguma forma, de algum jeito que nem eu mesmo sei, eu ficaria pra sempre. Não todos os dias, não todos os anos nem em todas as palavras. Só ficaria aguardando por ela em algum lugar. Ela saberia onde me encontrar mesmo que eu nem mais existisse. E ela me conhece menos ainda quando dou bom dia, quando finjo que está tudo bem, quando escapo da multidão. Mas ela ainda seria a voz que escuto todas as vezes antes de dormir. Ainda seria o assunto pendente. A vontade de querer dizer mais e ficar quieto mesmo assim. Seria tudo o que eu sempre quis. Mesmo não conhecendo nem o jeito que ela se levanta da cama ou qual é o seu sabor preferido de sorvete.

Ela não me conhece. Eu que falo tanto das minhas manias e dos meus medos. De quando eu falo alto pra espantar o bicho-papão. E não me conhece. Mas ela não sabe o motivo. E se soubesse, também não diria. Porque faz parte. Só ficar em silêncio. Eu entenderia. Nada mais é preciso, só ficar em silêncio e eu entenderia. Depois nós seríamos somente desconhecidos. E tudo só existiria pra mim. Só pra mim.

Beatriz Adrivin
Enviado por Beatriz Adrivin em 17/08/2012
Código do texto: T3835813
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