ERA UMA VEZ....
Era uma Vez!...
Foi uma dessas tardes que a gente nunca esquece; mainha não estava em casa, nem Julia, a moça que cuidava de nós. Como nossa casa ficava na beira de uma estrada boiadeira, mainha nos recomendava pra que a gente nunca abrisse a porta para pessoas estranhas.
Estávamos em casa naquele dia eu e minha irmã mais velha; nossa casa era muito simples, grande vista de fora, e ainda maior vista por dentro; era de um vazio que às vezes causava medo até pra nós que já estávamos acostumados. Na cozinha apenas um fogão de lenha, feito sobre um estaleiro de varas, e embaixo dele a lenha que o mantinha aceso por vida. A traia da cozinha era pouca; algumas panelas de barro, umas poucas de alumínio, e sobre uma mesa colocada no canto ficavam os pratos. Na trempe do fogão que ardia em brasas, uma chocolateira com água e um bule com café sempre quentinho.
Na sala apenas um banco e a varanda totalmente vazia. Dois quartos na casa; em um deles uma cama de casal e um berço; no outro duas camas de solteiro onde dormíamos eu e minha irmã. No terreiro da nossa casa bem na frente, um pé de Coirana que servia de poleiro para as muitas galinhas que tínhamos. Embaixo do pé de Coirana uma pequena paiada onde dormiam as galinhas chocas, e lá também tinha ninhos para as galinhas botadeiras. Trovão, nosso cachorro de guarda também dormia dentro da paiada, bom pra espantar raposas e outros bichos comedores de galinhas.
Não tinha cerca nem muros; era um descampado só. Mainha tinha ido buscar água na bica do velho Bronco, e Julia tinha ido comprar querosene na venda de Salmon que ficava lá pros lados da Sete-voltas; estávamos sós eu e minha irmã; bateram em nossa porta; eu estava encima do fogão, e num salto já estava na porta para ver quem estava batendo. Vi pelo buraco da fechadura uma pessoa em pé junto à porta e que batia incessantemente; mesmo com muito medo eu abri a porta, e me espantei ao ver uma mulher alta extremamente alta com uma trouxa na cabeça, que em seguida jogou ao chão. Minha irmã chegou em seguida para também se espantar com aquela figura; era nossa tia Raabe que estava retornando de suas andanças pelo oco do mundo. Nós a conhecíamos apenas de ouvir mainha falar. Tia Raabe era a ovelha negra da família que estava de volta entrando porta adentro da nossa casa, trazendo consigo uma carga enorme de dores e sofrimento que se via estampada nela como um rotulo que descia da cabeça aos pés.
Entrou, arrastou para dentro a sua enorme trouxa, sentou-se no banco da sala, tirou um copo de alumínio que estava amarrado ao nó da trouxa e pediu água; Nice minha irmã prontamente a serviu; tia Raabe estava sedenta, que bebeu três copos d’água qua-se que num gole só.
Eu não guardei dela os traços do rosto, mas trago ainda hoje a sua silhueta estampadas num pano de fundo branco povoando meus sonhos quando volto ao passado. Vejo mainha chegando com a lata d’água na cabeça espantando-se com aquela “estranha” sentada no banco da nossa sala. Ao reconhecê-la foi inevitável um longo e forte abraço, e logo todos nós ficamos sabendo que ela estava muito doente, com tuberculose e doenças veneras adquiridas ao longo dos poucos anos que viveu no oco do mundo, com a vida desregrada que ela própria escolheu levar.
Estávamos vivendo os anos cinqüenta, e nessa época nenhuma dessas doenças tinha tratamento nem cura, era bastante esperar a triste morte chegar. Diante desse quadro mainha resolveu levar tia Raabe pra quem dela deveria cuidar; foi pra casa de vovô na Faz. Pedrinhas, onde veio a falecer pouco tempo depois; seus restos mortais foram sepultados no cemitério da família que ficava localizado no alto do chapadão da Faz. Três Barras. Apesar do receio, tia Raabe não contagiou com suas doenças nenhuma das pessoas que cuidaram dela até sua morte.
Não me lembro quantos anos ela tinha, e até hoje eu não consigo entender porque motivo ela fugiu de casa para se prostituir. Eu acho que foi somente para cumprir seu destino; que Deus a tenha!...