.:. Crochê de palavras .:.
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– Essas mocinhas possuem prendas esquisitas. – Comenta D. Tetê, falando da neta. – Sabem pranchar os cabelos sozinhas, entendem de controles remotos, de moda, MSN, lutas marciais. Quando eu era donzela sabia lidar com tricô e crochê. A Damiana, você está me ouvindo, Laura?
– Estou mãe! – Grita D. Laura da cozinha.
– A Damiana é inútil nesta casa, filha! Não lava. Não passa. Não frita ovo! É só na boa vida de princesa...
– Melhor assim, mãe! Ela precisa estudar. Entrar numa universidade. Passar num concurso e casar, se quiser. As coisas da casa ela encontra quem faça. Basta procurar.
– Esse povo é preguiçoso e descansado, filha! Pensa que marido atura mulher sem dotes? Depois, contrata mocinha nova e faceira demais para engomar e passar e a coitada acabará mesmo é sendo passada depois de ter sido engomada, de soslaio, pelo marido da patroa. Homem não é besta não, filha! Soltou no pasto vira caça!
– De que adiantou a senhora aprender a tocar piano se os saraus[1] viraram objeto de recordação? A senhora, quando deveria e podia, nunca foi de pândegas. Qual a última festa em que a senhora dançou, lembra? Bordar, fazer crochê e tricô serviu para que, mãe? A senhora raramente tocou piano fora de casa e o pai foi embora não se sabe nem para onde... Nem lembro mais de como é a cara dele.
– Guardo no coração as melodias que aprendi e isso me alegra. A música, a boa música, é terapia inconsciente. Bordar me faz esquecer da tristeza e da solidão. Ser largada pelo marido ainda no viço da idade e resistir aos apelos do corpo e a tantas investidas de lobos sedentos foi penoso. Eu me segurei, resignadamente, mais por você do que por mim.
– O que tenho com isso, mãe? Não pedi para nascer!
A velha, saudosa, ignorando o comentário da filha, prosseguiu:
– Tinha hora que o calor subia pelo corpo todo e o jeito era varrer a casa para queimar o fogo que me abrasava os desejos. Só eu sei como recusei, filha. Saudade do Manuel – ele era uma tentação. Era o homem se aproximar e a espinha dorsal ferver até a altura da virilha...
– A senhora fala demais desse Manuel. Tem hora que penso...
– Deixe de ser atrevida e mal agradecida. – Interrompe D. Tetê. – Foi com o tricô e o crochê que criei você! Prefere o agir da sua filha? Para ela, tricotar é falar da vida alheia! Bordar é arte, Laura! Como ocorre durante o coser dos tecidos, nossa vida é um emaranhado de fios interligados; se desatentos, daremos muitos nós cegos, difíceis de serem desfeitos. Viver requer atenção. Bordar também. Atenção, disciplina, regularidade, afeição: esses são os requisitos necessários para que os frutos sejam reconhecidos e deem prazer ao artífice.
– Os tempos são diferentes, mãe!
– Nada disso. Gente boa e gente azeda sempre existirão. E mulher, qualquer que seja a formação, precisa ser mulher, ter modos de fisgar o peixe e manter o varão eternamente com fome! É pelo bucho que pegamos o homem. As amenidades e faceirices do início de namoro, quando até o bafo podre agrada (puro fingimento típico de cobra antes do bote), isso some com o tempo. E essa história de que se não der certo separa não é coisa de Deus! “O que Deus uniu, que o homem não separe!” Essas modas, filha, são ruins, obra do encardido – família, filha! A família é a guardiã do templo sagrado, lugar onde repousa a chave da felicidade.
– E o pai da Damiana, mãe? Foi embora, sumiu... E ainda levou o piano velho que o papai deu para a senhora. Ele nos abandonou por causa da comida, foi? Passava mal aqui conosco? Salafrário sem coração. Quando ele se foi a Damiana ainda engatinhava.
– Dois bichos safados duma figa! Está vendo? Se não estivesse aqui fazendo meu crochê, já estaria era ficando roxa de tanta raiva – tricô relaxa, fia! Croché também.
– Mas alguém precisa trabalhar, mãe.
– Agradeça a Deus pelo que tem! Dê obrigações à sua filha. Ela precisa mesmo é de nos ajudar.
– Precisa estudar, mãe.
– Estudar e ajudar em casa. Essa menina não sabe coar um café! Nunca arrumou a própria cama... Deixe-a arrumar uma passadeira nova quando casar. Vai deitar e amarrotar a cama dela, gemendo no ouvido do cabra. Homem é martelo, minha filha! Eles gostam mesmo é de bater a cabeça onde houver buraco!
– A senhora exagera demais, mãe!
– Damiana tem quinze anos, Laura. E você já solta a menina no pasto, sem o olhar zeloso do pai!
– O pai dela sumiu, mãe! E ela sabe se cuidar.
– Sabe não. E a partir de hoje vou ensinar para ela o que aprendi. Ela vai tocar piano, bordar e aprender crochê e tricô.
– Mãe! Os tempos mudaram. Isso seria ridículo para ela. As amigas fariam gozações. Isso pode gerar traumas, a senhora se esquece disso?
– Filha, esse negócio de pedagogia liberal demais é coisa de enrustido. Espancar os filhos eu sou contra, mas uns corretivos na hora certa, nunca matou ninguém nem fez cair o dote, se o cabra for macho! Quando os pais negligenciam e protegem em demasia, a sociedade cobra caro! Nem a bênção essa menina toma! Como pode uma criança sair de casa e ao lar retornar sem as bênçãos dos pais? Que absurdo! A bênção cura, protege. Ou ela não toma a bênção com vergonha? Faz vergonha é dormir até essa hora. Vou acordar aquela preguiçosa é agora mesmo!
(No quarto)
– Acorde, Damiana!
– Que foi, vó?
– Levante e arrume sua cama, agora!
– Não, vó! A Branca faz isso todos os dias para mim!
– Pois agora quem vai arrumar é você! Ou faz, ou sua branda vida vai ficar é preta!
– Mãe, a vó quer que eu arrume a cama!
– E vai ser todo dia a partir de hoje.
– Vou tomar banho, vó!
(Horas depois)
– Minha filha, você estacionou no banheiro, foi?
– Ainda vou tomar café, vó!
– Saia logo desse banheiro! Durante o café falarei para você sobre as novas regras.
– Que regras, vó?
– Saia!
.:. #.:. Ni .:. # .:.
– Faça um hambúrguer para mim, mãe! Ovo malpassado, tá! Estou faminta.
– Vou matricular você num curso de piano.
– Adoro música, vó, mas só curto ouvir, tá! Nem vem com essa de aula de piano porque odeio tocar!
– E vou ensinar você a bordar, fazer tricô e crochê.
– Estamos no Século XXI, vó! Não vou me transformar em dona de casa. Esse papo de velha coroca combina com a senhora! A vida mudou. As pessoas mudaram. Tenho quinze anos!
– Vai aprender, sim! Isso não tem nada a ver com a idade. As peças são lindas e aquecem do frio. E você me respeite, menina!
– Vó, moramos no Nordeste! Aqui faz calor o ano inteiro!
– Você vai aprender e vamos começar hoje. Tome seu café e escute. Se você pensa que o bordado é coisa de roceiro nordestino, saiba que a origem dele vem da china e foi difundido na Europa. Você se acha tão chique, mas desconhecia isso! O crochê se faz com uma agulha. É arte artesanal de muita sensibilidade e o seu trançado produz rendas lindas! – A avó tentava roubar a atenção da neta que detinha o olhar no hambúrguer esquentando na chapa. – O tricô, Damiana – Continua a avó – é feito com duas agulhas e foi desenvolvido no Egito dos faraós. Os dois são trabalhos manuais de causar inveja. Sabe o que é um cachecol?
– Certo, vozinha querida! Morro de inveja de quem faz isso... – Comenta a neta, dando com os ombros. Olha para a mãe e continua o rosário: – Mas me interesso por lances diferentes de cachecóis.
– As esposas usavam o tricô na confecção de meias e cachecóis para a proteção dos maridos, sabia?
– Poxa, vó! Quero nem saber de marido agora. Nem namorado quero ter ainda! Homem é atraso de vida!
– Mas vai namorar. Casar... Ou quer ficar para titia? Pelo amor de Deus, não me diga que você é moderna demais e...?
– Pronto, filha! Tome o leite e coma o hambúrguer. Estão deliciosos!
– A gente começa hoje com o crochê – uma única agulha. Faremos linda peça para você usar! Depois ensino você a utilizar as duas agulhas no tricô e faremos lindas peças de lã.
– Se precisar usar isso eu compro feito!
– Com que dinheiro, sua atrevida? Beba logo esse leite e vamos começar.
– Eu não quero trançar linha coisa nenhuma, por favor! Não estrague meu dia tricotando minha vida sem permissão. Quero estudar. Preciso estudar. Ajude, mãe! Não quero saber de uma nem de duas agulhas. Se as guias são tortas ou retas; se chamam de Crochê, croché, crochet, tricô, tricot... A vida já é complicada demais para mim, vó. Mesmo em francês soa como velhacaria e não quero isso para mim.
.:. #.:. Ni .:. # .:.
O piano ainda é tocado mentalmente por D. Tetê. São árias melancólicas, mas salutares depois da menopausa. Pelo menos das cólicas ela ficou livre. D. Laura arrefeceu o calor da virilha, continua varrendo a casa, quando o corpo esquenta, e chorou bastante ao saber da morte de Manuel. Damiana cresceu. Virou mulher. Casou, sem se formar, e agora, depois que ficou sozinha com a única filha, tenta aprender pela internet os pontos em cruz dos bordados – foi a forma que encontrou para criar a filha, depois que o marido sumiu.
Hoje faz muito frio e a pequena Bianca, filha de Damiana, parece resfriar-se. D. Tetê até que tentou, mas o cachecol não ficou pronto, antes dos ventos alísios que trouxeram a geada que assolou a Região Sul do país, onde atualmente moram as quatro mulheres...
As meias ficaram prontas e estão penduradas, esperando a chegada do Natal.
Crato-CE, 18 de setembro de 2011. 22h14min.
[1] Sarau – s.m. Reunião festiva, à noite, para dançar, ouvir música e conversar. Reunião noturna, de finalidade literária...
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Quem costuma fugir do que parece interessante por temer decepções futuras, gosta de viver o agora enxertado de mesmices e mediocridades, pois estas adjetivações, em virtude de suas pletoras, não nos causam espanto.