.:. Bingo! .:.

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A virtualidade faz milagres!

Os textos, outrora ansiosamente esperados, agora circulam mundo afora na velocidade da luz!

Talvez esteja sendo otimista demais; talvez pertença à linhagem dos notoriamente pessimistas. Em qual dos grupos me enquadraria? A pergunta seria: sou um cara de sorte ou homem fadado às agruras da vida? Pus-me a viajar no tempo. Vi-me criancinha. Pré-adolescente. Adolescente. Homem feito.

Na infância, ganhei tudo que uma criança pobre tem direito: família, escola, amigos, irmãos, comida... Opa! Não é bem assim, não. Família é coisa rara! – e família estruturada é presente fino, escasso em muitos lares abastados, onde a grana flui como ar, mas a infelicidade reina! Escola também é artigo de luxo, claro!

Afirmar que tive amigos seria exagero, eufemismo[1] – tive alguns camaradas na época de escola, nada além disso. Já irmãos, para um garoto pobre, não é algo merecedor de menção honrosa. Quem não os tem é que está errado. Afinal, ter filhos entre pobres é mera questão de tempo. Quando nos damos conta, nossas mães já são multíparas[2] e recalcitrantes[3]. Além disso[4], a prole vai ficando enorme!

Alimento e cascudo eu tive o suficiente. Com estatura pouco acima de metro e meio, cresci e me tornei quase gnomo[5]. Feinho-arrumado e cheio de graça, consegui casar e ter filhas lindas! Isso me habilita a ser um cara de sorte?

Testar a sorte sem excessos faz bem, relaxa os músculos da alma. Iniciei-me na arte da mala fortuna[6] indo a um bingo. Depois de muita insistência de um dos meus irmãos, fui. Meu irmão é do tipo que para se dar bem ia sozinho; quando era para correr riscos, valiam os laços fraternos. Eu servia de escudo, sendo usado como pretexto, diante da nossa implacável mãe, durante as desculpas mais descabidas inventavas por ele. Quando as justificativas não convenciam totalmente e tínhamos 50% de absolvição – ele arriscava. Por vezes apanhávamos juntos; noutros momentos escapávamos da justiça materna. Eu era autêntico mão-de-vaca; ele, pródigo[7] de carteirinha. O convite, portanto, tinha uma única justificativa: eu teria que pagar as duas cartelas! E assim foi feito...

Domingo pela manhã. Dia do bingo. Ele me acordou cedinho e até tentou me convencer a não ir com ele.

– Fique em casa que marco sua cartela...

– Quero ir!

– Vai ter muita gente, rapaz! E você não gosta de aglomerações...

– Quero ir!

– E se a mamãe não deixar você ir?

– Quero ir!

– Está bem!

Fomos. Houve algumas brincadeiras antes de chamarem a primeira pedra. O dono da mercearia tinha aproveitado para lucrar uma gana extra, vendendo churrasquinhos e bebidas. Onze horas da manhã. Finalmente anunciaram o bingo.

Primeira pedra!... “36!”

Segunda pedra! Dois patinhos na lagoa... “22!”

Terceira pedra! Idade de Cristo... “33!”

Quarta pedra! Começou o jogo... Número “01!”

.:. #.:. Ni .:. # .:.

– Ei, mano! Armei!

– Sério?

– Sim. Falta o número 18.

.:. #.:. Ni .:. # .:.

Já tem gente armada...

– Atenção! Próxima pedra! Número “18!”

– Bingo! Bingo! – Gritei.

Meu irmão me abraçou todo feliz. Perguntaram se era verdade mesmo... E fui conferir pedra por pedra. Tudo conferido, o dono do bar proclama:

– Bateu mesmo, pessoal! O garota leva o carneiro!

Foi uma festa! Saímos felizes. Chegamos a nossa casa. Minha mãe, ao notar o animal, gritou:

– Para que esse bicho aqui? Podem logo dar um fim nisso! Ora, não tem espaço nem para vocês e ainda me trazem um animal! Podem devolver...

– Mãe, eu ganhei no bingo!

– Foi, mãe. Ele ganhou mesmo. Eu estava lá. Muita sorte, não acha?

Ela quis sorrir, mas não se rendeu, permanecendo calada.

Passamos o restante do dia olhando para o bicho, como se fosse um troféu.

Na manhã seguinte acordei cedinho e fui dar capim para o animalzinho. Foi quando me falaram que ele gostava mesmo era de milho. Fui ao bar do Seu Chico e comprei dois quilos de milho. O carneiro foi comigo comprar o “di cumer” dele! Voltamos. Derramei todo o milho de uma só vez pelo chão do quintal. O bicho comeu. Comeu. Comeu... E eu olhando tudo, feliz. Voltei para o mercadinho e comprei mais um quilo de milho. Seu Chico elogiou minha sorte, achou o bicho bonito, e vendeu outra saca de milho no vale da minha mãe. Derramei tudo no quintal e o bicho devorou.

Os dias seguiam e mantive o ritual. O bichinho parecia doente. Chamei um amigo que entendia do assunto e ele me falou que o animal estava “empanzinado”[8]. Comprei remédio e nada. Já tinha gasto, entre milho e medicações, duas vezes o preço do bicho. Apesar do desvelo, em menos de dez dias meu carneirinho morreu.

Persiste a dúvida, não consigo definir: sou mesmo um cara de sorte?

Na velocidade do som, espero sua opinião... E a ansiedade é a mesma de outrora, porque o homem não muda: temos apenas pequenos e sutis traços de maquiagem.

Juazeiro do Norte-CE, 2 de maio de 2008. 10h50min.

[1] Substituição de um termo ou expressão rude, chocante ou inconveniente por outro mais suave ou agradável.

[2] Mulher que já teve vários partos.

[3] Desobedientes, teimosas.

[4] Descendência, filhos.

[5] Os gnomos são espíritos de pequena estatura amplamente conhecidos e descritos entre os seres elementais da terra. Com a evolução dos contos, tornaram-se, na imaginação popular, anões, senão seres muito pequenos com poucos centímetros de altura.

[6] Má sorte

[7] Perdulário; quem gasta excessivamente.

[8] Empachado, empanturrado, alambazado. Aquele que come excessivamente.

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Que a eternidade deste instante, amargurando, sim, minha solidão, não se finde com o cerrar da luz.

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 17/08/2012
Código do texto: T3835127
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