A chuva é o bicho

Sete horas, noite precoce. Semana que vem começa o horário de verão, quando a vida parece se estender junto com a luz do sol, e quem sai tarde do trabalho tem a impressão de que lhe sobra mais tempo para fazer tudo aquilo que gostaria de fazer à luz do dia mas não consegue – e, por outro lado, quem acorda cedo para pegar o ônibus que o levará para o outro lado da cidade e do mundo tem a impressão de que lhe encurtaram a noite, tirando-lhe preciosas horas de seu já compilado sono. Visões diferentes de uma situação cujo pragmatismo oculta todo o possível encanto ou desastre de se estender a vida.

Tive um dia difícil, cansativo, mas não posso ir para casa ainda. Tenho muita coisa a fazer, vou voltar ao escritório, mas estou parada no semáforo, um mar de carros à minha frente, as lanternas vermelhas me hipnotizam como sangue na retina. Debruço-me sobre o vidro aberto, sem medo de assalto - quem é que iria assaltar um espectro? Assim me sinto, assim me encorajo. Percebo minhas profundas olheiras pelo espelho retrovisor, mas além delas, muito atrás de meus olhos cansados, noto o chão amarelo e lilás, inverossímil tapete que a recente chuva criou ao derrubar milhares de pequenas flores das imensas tipuanas e jacarandás da calçada. Sim, foi a chuva, a mesma chuva que nos estancou aqui, alagando algum ponto na antiga várzea do rio, hoje subtraída da natureza e entregue aos automóveis - que, justamente por causa disso, ironicamente não conseguem avançar.

E então reparo no vendedor de balas do semáforo, na destreza e suavidade com que vai atirando nos espelhos laterais dos carros os pacotinhos pré-embalados com uma mensagem datilografada. Chega de olheiras e tapetes. Um real. Aceito passe. Corre leve, encaixando um por um nos espelhos como mágica, depois vai voltando e recolhendo; uma frase diferente para cada motorista, falando a todos. Ninguém comprou, nunca vi ninguém comprar mesmo. Mas ele sempre está ali. Reparo no timing perfeito, é um profissional do tempo. Já é a terceira ou quarta vez que passo por aqui hoje e outra vez ele insiste, mas como os outros nunca comprei; nunca compro. Mas isso não parece importar-lhe.

Inesperadamente ele pára ao meu lado, sem alarde; o vidro está aberto, estou encantada pelas cores das balas do leve saquinho, cuidadosamente pendurado no espelho.

- Cansada, né amiga? É, já está tarde, mas vou te dar uma dica: chega em casa, toma um bom banho... um banho gelado...

Tomar um banho gelado. A última coisa que gostaria de fazer hoje.

E olho bem para ele: um sorriso fácil, uma grande cicatriz perto da boca, a camiseta regata e um chapeuzinho maroto.

Sai correndo, quase flutuando, sem perder o timing, para recolher os saquinhos a partir do primeiro da fila. O semáforo abriu, ele já sabia disso sem olhar; com paciência eu o aguardo recolher o meu e ele me dá de novo um sorriso, completando seu pensamento, flutuando e falando, como se estivesse em vários lugares ao mesmo tempo:

- Mas banho frio que é bom mesmo é banho de chuva. Não é? Se molhar na chuva... é, chuva é o bicho!

Chuva. Seria muito bom um banho de chuva, lavar a alma no delicado equilíbrio da natureza, sentir como a vida é frágil e bela. De repente me sinto feliz, a chuva que já caiu me redime, a vida é mesmo bela e frágil como gotas, e elas caem e derrubam flores e criam tapetes e lavam almas.

O equilíbrio de nosso estado de espírito também é frágil e delicado. Respiro o ar poluído por centenas de escapamentos como uma fresca brisa marinha, olho as muitas luzes da cidade como estrelas ao longe, as lanternas vermelhas são reflexos das luzes de um navio flutuando suave no mar calmo. Estou no meio do oceano lilás e amarelo esperando a chuva que vai cair de novo e inundar minha alma.

Sabe, rapaz? É mesmo, a chuva é o bicho.

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(Agradeço a Obed de Faria Jr. as sugestões incluídas neste texto).