Aos amantes de gatos
Sempre amei cães, os dóceis cães e suas línguas rosadas, sua respiração ofegante, seu focinho úmido, gelado; as orelhas, de todos os tipos, sempre mostrando um sentimento qualquer, os transparentes cães. Cães submissos, leais, patéticos até. Cães que podem rosnar ou morder, mas sem perder a humildade. Os amigos cujo afeto sincero demonstram a todo momento, sem o menor constrangimento, independentemente do tamanho do sacolejante rabo.
Só via beleza nos cães, pois para mim a beleza estava associada à previsibilidade de seu temperamento, à sua docilidade, à sua propalada fidelidade. A beleza da obediência cega aos comandos, da anulação de sua condição de animal mediante um gesto do dono, e até mesmo da perversidade consentida de ser propriedade de alguém, como um adorno.
Mas o destino me reservava a retratação, ainda que tardia, pelo desprezo que sempre manifestei pelos gatos. E passei a observá-los, e àqueles que gostam deles. Estes são pessoas interessantes, libertárias, egoisticamente felizes. São aqueles que buscam sua vida em si próprios, e não no outro. Aqueles que pautam sua conduta apenas pelo espelho, e nunca através da janela. Os que obedecem a comandos, ou melhor, os que ouvem opiniões que os apetece ouvir, de preferência quando não lhes são impostas, ignorando com altivez a recompensa, banal migalha de depois. São os que têm orgulho de seu corpo (a cauda macia do gato não foi feita para balançar para quem quer que seja), os que têm a sensualidade à flor da pele, mas que demonstram sua ternura apenas quando assim o desejam, se for de sua superior vontade. Porém sabem ser carinhosos e agradecidos (como ronronam os gatos quando satisfeitos), e suas emoções passam por trás de seus olhares místicos, quase indecifráveis. Não são pessoas simples e planas, mas seres dotados de uma aura especial, quase um campo de força que os impede de obedecer ao seu dono – simplesmente porque não os têm, já que ninguém os possui de fato.
Gostar de cães pode significar gostar de dar ordens, de sentir que se é respeitado e obedecido; pode significar um amor muito grande a si próprio, apesar de parecer o contrário. Gostar de cães é fácil porque não dá trabalho, é simples - o amor deles é incondicional, mesmo com os tapas e os gritos, mesmo sob os comandos com voz impostada, mesmo assim eles nos amam; apesar de sermos tão mesquinhamente humanos, eles nos amam. Mas para gostar de gatos, é necessário um desapego muito pouco usual: é necessária uma dose de boa vontade e de amor pelo amor, sem a necessidade visceral que temos de nos sentir amados, quando o gato nos vira solene o dorso a rejeitar nosso carinho.
Há que ser igualmente independente para gostar de gatos; deve-se ter o espírito preparado para o fim iminente, respeitar os limites, nunca sufocar. Deve-se lidar bem com a solidão, não depender de nada ou ninguém, ser quase auto-suficiente. Deve-se ter consciência de que a vida é totalmente imprevisível.
Quem gosta de cães pode planejar seu futuro com tranquilidade; mas a quem gosta de gatos só resta viver o momento presente com a certeza de que ele é o mais importante, e absolutamente único.