Testamento

Aos primeiros que roeram minha doce carne e ainda acharam amarga demais, pois prefiro escrever a esses.Esses sonhadores que vivem da putrefação de outrem.

Aos malditos ou santos vermes, que para mim parecem mais com anjos.Roeras-vos minha carne sem piedade e ainda sim chamo a vos de anjos.Anjos são aqueles que nos liberta do peso de viver.

E são pesados demasiadamente para morder minha alma, quiçá minhas unhas.Minhas unhas ajudaram a apontar as estrelas e a guiar meu coração.

Mas meu coração a muito parou de bater. Por infâmia do destino ou talvez por presunção de suas batidas sempre a cima do entendimento dos que aqui ainda dizem viver.Mas gosto dos aflitos e dos serenos, ambos se iludem e minha ironia compreende os dois.

Aos sadios e aos torpes vermos deixo minha limpa carne, que por existir não se sujou com o vômito de outros de vos. E ao morderem meus olhos se contorceram de tamanha indigestão. Meus olhos vêem e sentem demais para qualquer um tentar degusta-los.

Se, tenho-me em um peito aberto e a um casto desejo, sujo todos os impunes de vossa praça pública, pois esses espantadores de moscas ainda não compartilham do belo vôo de um inseto, quanto mais da elevação de meus pensamentos, então me resta rir perante eles.

E deixo meu testamento aos outros que viram saciar sua sede com meu sangue. Pois que me valeria viver sem sangue?Mas depois de me pungirem com vossas risadas meu sangue a de coagular e meu testamento virá como um bom arauto para vossos ouvidos.

Tenho demasiado concupiscência, então devo partir como um relâmpago que vem torturar a terra, esse chão. Esse mesmo chão e essa mesma terra que serve de suporte para vossos corpos a de me corroer sem devoção, mas acredito ainda em anjos negros e em santos pouco castos.

Achas que vivera?Ah, como podes vermes, tão pequenos e tão néscios como vos. Parecem-me tão chagados e tão cansados, mas ainda possuis forças para adentrar em minhas entranhas, e não me causa dor, causa-me no Maximo compassividade.