Uma outra provável personagem numa tarde mais Morena

A tarde já amorenando-se por trás dos prédios e de repente uma vontade louca de comprar algo novo. Entrei em uma loja e comecei a busca. Mais que de repente uma mulher no caixa chamou-me a atenção. Falava em como era conhecida com seu ar ex-socialite. A conversa foi evoluindo entre ela a vendedora e a gerente da loja. Pela quantidade de roupas que ela escolheu provavelmente já se encontrava na loja há pelo menos uma hora. Eram blusas e vestidos empilhados sobre o balcão sendo somados e a mulher não parava de falar em como era conhecida, pois morava no edifício mais caro e “inclusive tinha uma parenta que possuia” uma loja na Oscar Freire. Olhando de longe em algum momento comecei a pensar que ela ia pedir para comprar fiado. Fiquei na dúvida.

Não é insuportável quando alguém entra numa loja, escolhe as roupas todas e na hora de pagar começa a protelar. Não é aquela que diz para a vendedora:- Estou procurando uma blusa assim, assim, assim; ela, a vendedora, saberá neste ponto que a cliente pode não comprar nada naquele dia, pois está apenas “procurando” a blusa certa, e isso demanda várias visitas, a várias lojas. O importante neste caso é que a cliente dá todos os sinais de que está escolhendo e vai comprar naquele momento e então começa com as desculpas mais óbvias quando descobre o preço final das peças escolhidas. – Como escolhi três vestidos iguais? Você não viu isto? Inquiriu a vendedora. - Eu não vou levar cinco blusas iguais, você não está vendo?! Antes que a moça pudesse responder a gerente interveio e pediu que ela fosse atender outra cliente, eu.

Eu que observava tudo de longe já pensando naquela possível personagem para um romance dramático onde ela, não aceitando a própria idade, vivia reclusa em um quarto refrigerado, pois acreditava que assim poderia rejuvenescer. Sem espelhos em nenhum lugar da casa, não acreditou quando alguém lhe diz que não estava dando certo e na última página do livro morre sozinha e murcha como uma folha de alface. Alta, pele clara, cabelos louros e tinha entre cinqüenta e quinhentos anos. Foi provavelmente magra e linda durante boa parte da vida. Tinha auto-estima impecável e tentou incansavelmente obrigar a vendedora a deixá-la entrar em um tubinho preto mais P do que nunca. Observei seu rosto, entre uma marca do tempo e outra percebi o desespero de um ser que desprezou o tempo e suas conseqüências. Talvez se ela pudesse esquecer a antiga imagem, poderia ver-se plenamente no espelho do provador e perceber o óbvio. O tempo passou, ela não é mais uma Rainha Dançando num Baile e quanto mais esta mulher não se aceita, mais teatral se torna sua vida. Teatro para um público ás vezes piedoso, perplexo e na maior parte do tempo cruel.

O mais interessante é que aquela mulher ainda é bonita! O rosto é bem feito e os olhos tem expressão apesar da falta de naturalidade. Não é que o botox a tenha desfigurado, o rosto ainda tem dois olhos e um nariz. Penso que é como se tivesse dormido com quinze anos e acordado no dia dez de agosto de dois mil e doze, com alguns milhões de anos. Levantou-se a bela adormecida, vestiu as mesmas roupas e saiu às compras e eu, que só estava procurando um short que coubesse aos meus trinta e sete anos, tive o prazer de me encontrar na primeira loja em que ela entrou. Se não encontrei o que procurava, ela, eu tenho certeza, também não encontrou. Afinal não precisava de roupas e sim de alguém para conversar. Ela não precisava de meia dúzia de frases feitas, “Eu me amo e não posso mais viver sem mim” mas talvez: Se enxerga mulher que a minha vó é mais nova que você, sei lá, uns vinte anos” na lata só para iniciar o tratamento de choque.

Juro que quero morrer minha amiga, hoje estou puro veneno! A tarde cai rapidamente, hora de fechar a loja e nada da minha personagem favorita terminar o discurso. A gerente dá uma olhada no relógio, tenta finalizar a compra. Eu também sou uma provável comissão e começo a incomodar a minha vendedora que depois de escapar da cliente caroço, afinal, já me avalia como a sua cliente miranda (que mira a roupa e anda). O melhor mesmo é convidar aquela senhora para tomar um porre, depois ouvir o meu pirata mau dizer Neruda, de madrugada, em algum lugar, que lá Graças a Deus, ninguém tem idade. Já estava gostando dessa idéia louca, ensaiei um passo em sua direção e num repente muito mais que de repente ela sacou a carteira, pagou metade das roupas, abraçou suas sacolas e foi embora.

Muito mais impressão do que seu teatrinho dantesco enquanto esteve na loja, foi a sua retirada triunfal porta afora. Passos firmes, cabeça erguida, uma dama. Naquele momento fatídico, senti muita inveja daquela criatura. Um enigma contemporâneo chamado de mulher. Um ser autóctone, criação do lugar onde habita. Criação da criação que recebeu no berço, minha mais perfeita personagem redonda. A sensação de perda foi inevitável. Eu, quanto futura romancista de sucesso, não poderia ter deixado que ela partisse, dissolvendo-se, um raio de sol entre o entardecer desta tarde morena. Que absurdo!

Enquanto ainda a seguia com os olhos através da vitrine ouvi um leve suspiro e ao olhar para trás, vi todas as pessoas na loja olhando o mesmo que eu até que ela desapareceu entre carros, pessoas e gingles daquele político bonitão. Estavam fechadas as cortinas, fim de festa, the and.

Que nada menina! Ao cair das cortinas, sozinhas novamente, todas as vendedoras se voltaram para minha pessoa e pude ouvir seus olhares dizerem: - “E agora é sua vez!” Juro que se pudesse sairia correndo e gritando: - Amiga espere por mim!

Gauto
Enviado por Gauto em 16/08/2012
Código do texto: T3833996
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