Preparo pra te esperar (txt reeditado)

Antoine Saint Exupery na decantada frase “se tu vens às quatro da tarde, desde as três começarei a ser feliz ... É preciso ritos”, alertou-nos para a necessidade que o homem tem de rituais.

Sim, nós nos cercamos de rituais em todas as circunstâncias como que tecendo em suavidade nosso cotidiano. É um estar preparando o coração para as coisas.

Voltando a Saint Exupery, é preciso ritos, sim.

Escritor este que ficou “famoso” entre nós por ter suas citações (profundas sim), barateadas nos anacrônicos concursos de miss, onde nossas jovens, suposta e concomitantemente as mais belas e menos inteligentes, deveriam citá-lo, numa grosseira apologia à leitura como se aquelas jovens talvez não tão afeitas aos livros, devessem mostrar algum conhecimento. Em vista dessa preconceituosa mentalidade – logo substituída pela das top models , o escritor foi desvalorizado a tal ponto que as mentes “mais esclarecidas” julgavam impróprio citá-lo, como se isso as desabonasse intelectualmente. Vivi isso, uma vez que, entre as primeiras letras, foi-me incutido (eu diria inoculado) o germe da paixão por livros e tornou-se desprestígio citar o escritor. Que loucura...

Pois bem, o homem, esse bípede, mamífero, desemplumado, ereto, sempre desenvolveu ritos. Há aqueles passados de geração em geração, há aqueles inerentes à cultura de cada agrupamento humano estabelecido em determinado local e há os novos criados pior cada um, no afã de aparar as arestas de duras realidades ou cercar o dia-a-dia de significâncias.

O homem, único animal a receber o sopro divino, sendo portanto a este assemelhado, cria seus preparos em função não só de afeições, códigos sociais e religiosos, mas até no prosaico dia-a-dia.

O jogador que se benze ao entrar em campo, a modelo que faz respiração “cachorrinho” ao adentrar a passarela, aquele que vai ao banheiro com uma pilha de revistas e exige silêncio de todos na casa para se concentrar em suas funções fisiológicas... coisas simples ou, no mínimo, esdrúxulas.

Mas os ritos do coração, em virtude de afeições, são belos, doces, surpreendentes... e tolos. É, tolos, sim; já disse o saudoso Fernando Pessoa que “todas as cartas de amor, são ridículas e se não fossem ridículas não seriam cartas de amor”. Perfeito, os ritos de amor são ridículos e por isso mesmo, sublimes, atemporais.

Quem, apaixonado, nunca se viu horas de pernas cruzadas no sofá ao lado do telefone, como se isto fosse “despertar” o aparelho e trazer a voz amada; às vezes, chega-se ao cúmulo de esperar que toque um número x de vezes, enquanto nos acalmamos e o coração ansioso já crer ouvir a voz querida. Isto vale para jovens de 16 a 60. Desminta quem for capaz!

Passam-se horas refazendo o penteado, ensaiando uma resposta pra tal e tal assunto e por aí vai.

Cercamo-nos de cuidados tentando domesticar o tempo, as circunstâncias numa vã tentativa de fazê-las previsíveis para que nos saiamos bem nesses momentos. Vale também para o trabalho, para o estudo, etc

O citado escritor falou que “se tu vens às quatro da tarde, desde as três começarei a ser feliz, mas se tu vens a qualquer hora, nunca saberei a hora de preparar meu coração”. É o rito do preparo não só exterior como também interior. Arrumar a casa (coração), tirar as teias (amarguras), limpar o pó (desalento) e reorganizar o espaço para receber o novo hóspede, quem sabe, inquilino permanente (namorado, marido).

Mas esses ritos conquanto já façam parte de nós, também nos levam a sofrer mais. Se eu só me preparo pra te receber às quatro, só sofrerei por essa hora – se tu não chegares; mas se me preparei desde as três e às quatro não chegaste, meu coração já sofrerá por todo esse tempo; o momento que antecedeu a chegada, cheio de preparos me faz sofrer tanto quanto na hora tão esperada não chegas.

Melhor seria mesmo esquecer os ritos e, ao te ver chegar a qualquer hora, ficaria feliz.

Mas o que dizer se eu não gosto de surpresas? É um caso pior pois sofro pelo rito, pelo evento não acontecido, pela surpresa... e concluo que é melhor cumprir os rituais.

YARA FRANÇA
Enviado por YARA FRANÇA em 16/08/2012
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