.:. As moscas .:.
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Almoçavam. Loló, sem cerimônia, anunciou:
– Oh, mosca chata!
O pai, a mãe e a irmã mais velha cessaram o diálogo e fixaram o olhar na solitária recém-chegada. E a pequena insistia, parecendo dialogar com a bichana:
– Sai, mosca!
Surge outra. Surgem outras – poucas, mas eram outras moscas.
O almoço em família, hábito dominical, tenta prosseguir alheio aos fatos novos. De repente:
– Mate, mãe!
– Calma, filha! – A mãe falando.
– Calma, filha! – O pai falando.
– Eita, que chatice! – A irmã falando.
Sem se aperceberem, entre os aconselhamentos dos pais e os resmungos da irmã mais velha da pequena Loló, surpreenderam-se armados com pratos e talheres nas mãos. Cada um descobre a intenção do outro, num olhar mútuo. A primogênita do casal cobriu o prato das batatas-fritas; a mãe, carnívora compulsiva, protegeu os quatrocentos gramas de picanha argentina malpassada; o pai, assustado (faca na mão esquerda e garfo na direita), por pouco não quebra a porcelana do restaurante, ao tentar neutralizar o voo de uma das moscas que sobrevoava o baião de dois com queijo ralado, fresquinho...
O pai de Loló está visivelmente contrariado. Olha para os lados. Procura um garçom, o gerente... E tem a infelicidade de testemunhar a chegada do torcedor mais chato da cidade, Pablo. O homem só fala sobre futebol. Quis esquivar o olhar, mas Pablo o cumprimentou e, antes mesmo de sentar, perguntou:
– Como foi o jogo do Fortaleza na terceira divisão? Teve mesmo mutreta?
– Não sei. – Foi a resposta.
– O plantel[1] do tricolor deveria ter caído para o campeonato suburbano! Só assim realizaria meu sonho de infância assistindo a um jogo entre o Fortaleza e o meu time do coração, o Floresta: o melhor da Manoel Sátiro... Infelizmente, existem acontecimentos no mundo futebolístico que “as próprias razões desconhecem”...
Pablo soltava um rosário de argumentações, ia falando dos times e de cada um dos jogadores, mas o pai de Loló parecia distante, preocupado com a evolução dos fatos que ocorriam dentro das “quatro linhas” da mesa que lhe divisava o contratempo familiar. A refeição havia cessado. Estavam os quatro com as mãos em cima dos pratos, protegendo o “di cumer”. Por falta de pratos-cobertores, a salada verde ficou desprotegida e...
– Cobre a salada, pai! – Loló, novamente, testando os reflexos moscais.
– Como, filha? – Estou com as mãos ocupadas!
O pai protegeu a jarra de laranja em detrimento da salada. O suco deveria estar dulcíssimo, mas fora encoberto pelo contrariado homem, com a mosca dentro, enjaulada, ou melhor, “enjarrada”!
O baião do guisado esfriou, o queijo grudou no feijão, formando uma melecada só. A carne malpassada esfriou e o sangue, espalhando-se pelas beiradas do prato, aparecia aqui e acolá – a olhos nus –, sendo visto pela mosca-rainha do bando de intrusas. O gelo derreteu, mas para que gelo? Loló bebeu foi do degelo, quebrando nos dentes os pedacinhos remanescentes, aliviando a fome.
Pediram a conta. A mãe quis dirigir-se à gerência para reclamar, mas o pai achou melhor saírem sem rezingar. “A gente não come mais aqui e pronto!” – Comentou o marido.
O garçom veio, estranhou a quantidade de alimento desperdiçado, mas permaneceu silente. Um ar de tristeza rondava o ambiente familiar. Fome? Decepção? Frustração? O garçom espanta uma das moscas e a fugitiva voa para longe.
Entram no carro. Fecham-se os vidros e...
– Abre o vidro, pai! Tem mosca dentro do carro! – avisa Loló, incrédula.
– Ah, não! Não abro mesmo! – Responde o pai.
Com os vidros cerrados, inicia-se uma saraivada de golpes... E a esposa, mãe de Loló, acaba de gritar, depois de tomar sapatada na testa.
– Eu sabia que matava essa...
Crato-CE, 7 de outubro de 2011. 01h39min.
[1] Fig. Grupo de atletas de agremiação desportiva, principalmente de futebol, com que se conta para formar uma ou mais equipes.
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Redescobrir coisas belas é tão grandioso quanto o próprio ato original da criação.