Analfabetismo funcional
Algumas notícias que a gente vê na televisão mexem com a nossa indignação. Foi o que me aconteceu quando vi falarem sobre o analfabetismo funcional, motivo de desclassificação da maioria dos jovens candidatos ao mercado de emprego existente hoje no Brasil. Segundo a reportagem, o nosso país ocupa um dos últimos lugares quando se trata da produtividade, ou seja, a quantidade de jovens capacitados para exercer as funções que as indústrias e o comércio necessitam. A explicação é lógica: nossos alunos saem despreparados das escolas. E como não poderia deixar de ser, logo vem atirando pedras sobre os professores, esse estigma que os educadores enfrentam de serem os responsáveis pelo fracasso da aprendizagem de nossos alunos. Para provar o argumento, exibiram uma entrevista seletiva, onde foi incluído o ditado, já que uma das exigências da empresa seria o domínio da língua. E nessa entrevista, o resultado foi catastrófico, houve candidato que errou 28 das 30 palavras selecionadas. Frisaram ainda, que a maioria dos nossos concluintes do Ensino Médio não sabe interpretar o que lê ou não consegue articular e desenvolver suas ideias quando redigem suas mensagens.
Acredito piamente nisso. Acompanhei centenas de escolas durante a minha carreira e vi a cristalização dessas dificuldades na maioria das que inspecionei. Realmente quanto mais o tempo passa, mais espaço a escola perde para outros recursos que o jovem tem à sua frente para fazer a sua leitura de mundo. A escola está perdendo terreno a passos largos para a internet que se instalou no quarto, na sala, no telefone e sepultou os livros que faziam ricas as cabeças pensantes de outrora. Hoje temos cabeças robotizadas, tecladas, viciadas, todas conectadas no mundo, mas inteiramente alheias ao espaço secundário de convívio, que é a escola.
No entanto, a culpa não é da família, não é dos professores, e muito menos das escolas. A culpa é da cultura disseminada há longas décadas, séculos até, de que a educação se subdividia em classes sociais. Nos primórdios de nosso desenvolvimento, a educação do Brasil foi totalmente direcionada para a elite. Os descendentes da realeza e os filhos dos coronéis eram educados em colégios tradicionais, onde a cultura europeia tinha influência, os rapazes eram preparados para as faculdades do além mar e as mocinhas para a vida social que abraçariam ao assumir família. Aprendiam música, frequentavam teatros, conviviam com a arte e etiqueta social. Aprendiam a serem damas e cultas. Já os descendentes da plebe eram destinados à classe operária, para o trabalho bruto, condicionados à servidão que a nobreza exigia, sob o paradigma de que o trabalho engrandece o homem, mesmo quando não engrandece o patrimônio. Havia até a separação do ensino médio, sendo o científico para quem fosse seguir carreira e o comum, para quem fosse parar por aí. Depois, inventaram o profissionalizante para preparar os braços para o milagre econômico dos anos 70, como a esperança da industrialização que chegava por aqui. Daí, a concepção de que a vida é a eterna luta pela dignidade de fazer parte do mercado de trabalho, sendo a escola quem preparava essa massa que ia entrar na disputa por uma vaga salvadora. E por anos e anos, a sua preocupação foi preparar o jovem simplesmente para esse mercado mesquinho, numa formação capenga, onde a classe social saía carimbada na testa de cada um. E a luta tornava-se muito desigual quando se confrontavam na arena o produto da rede pública e da rede particular, que não por acaso, investia muito mais na formação integral de seus alunos. Hoje colhemos os frutos dessa política populista de educação, que quis transformar nossos jovens pobres na classe redentora do prejuízo econômico da desgovernabilidade, sugando o suor de nossa gente com o salário minguado que nos foi esmolado por tanto tempo. Agora as oportunidades existem, as indústrias expandiram, o comércio está acelerando a economia, mas não tempos profissionais à altura do desafio porque não houve investimento na educação como houve na indústria e no comércio. Temos tecnologia, mas não temos tecnólogos suficientes para suprir a necessidade. Temos indústrias, mas não temos técnicos capazes de acompanhar o progresso das máquinas. Temos um laboratório natural infinito para descobertas científicas, mas não temos cientistas e nem investimento em pesquisas por parte dos governantes. Temos o maior reduto de terras abundantes que poderiam suprir a subsistência do planeta, mas ainda temos gente passando fome, dependendo de caridade e cestas básicas para sobreviver. Temos reservas naturais e minerais de fazer inveja ao mundo inteiro, mas não temos engenharia de ponta para fazer uso de nossas riquezas. Temos criatividade ociosa, canalizada muitas vezes para o mal, porque estamos anos luz atrás de outras culturas, como os japoneses, que dominam o mundo com seu espírito criativo. Não chegamos nem perto da disciplina e da dedicação que eles têm. Temos escolas, mas não temos professores suficientes ou competentes o bastante para enfrentar salas de aula com a diversidade cultural que coabita esse espaço, pois na maioria das vezes não foram preparados para essa luta tão desigual, e mais, ainda continuam esquecidos e desvalorizados. Enfim, temos progresso, mas temos pouca gente no comando, pouca visão de quem comanda e muita indiferença de quem poderia mudar isso tudo. Infelizmente, aquela política de continuar fomentando a elite com o que há de melhor, ainda continua. Ao povo, ainda vale o discurso da educação básica, cesta básica, saneamento básico, saúde para todos, direitos básicos, tudo numa base só...a base da sobrevivência. Cultura, leitura, estrutura, essas coisas que nos conduzem à altura, para muitos, são frescuras, coisas que não cabem na cabeça e nem no bolso de quem tem que acordar cedo para defender o pão de cada dia, nessa luta por direitos primários e apenas essenciais. Afinal, produtividade tem vários pontos de vista e o Brasil precisa rever seus princípios quando se trata de educação, se espera pela transformação social de seu povo. Até lá, vamos viver por muito tempo com aqueles que passam pela escola e passam... levando muito pouco ou quase nada de bagagem. Mas a escola fez o seu papel. Algumas vezes amassado, mas fez. Por isso, temos tantos analfabetos funcionais diplomados perdidos pelo caminho.