Altamiro Carrilho nos deixa
O coração do flautista parou de bater ontem, aos 87 de idade. É grande minha comoção e ao mesmo tempo também enorme o contentamento da conformação e do júbilo diante do trabalhador que é retirado do serviço por uma contingência dura que é o fim da existência por aqui. Os grandes, os pequenos mas verdadeiros amantes das suas artes, jamais as abandonam e fazem delas partes intrínsecas das suas vidas, e Altamiro era e é um desses grandes, como foi Patativa na poesia e Beethovem na Sinfonia. Creio que a obra perpetua o artista e este nasce com a inspiração e a missão de dar conta do seu recado. Não há maior satisfação nem contentamento do que a própria execução daquilo que o bicho homem gosta de fazer, pagamento em dinheiro? Reconhecimento? Sim deve haver se “houver” mas já apenas o término da obra, pode ceertamente e brinda ao artesão uma insubstituível gratificação e não digo isso só por mim, sei por inúmeros pequenos trabalhadores que compartilham esse santo sentimento. Altamiro nos deixa, se vai e leva de mim a certeza de que não posso mas abraçá-lo e nem posso mas encostar meu ouvido direito ao seu peito do coração para tentar captar alguma daquelas vibrações afinadas com as musas sonoras que tanto nos fascinam... deixa estar, eu me conformo, eu aceito, sou generoso por graça do Criador e igualmente cultivo a gratidão. O grande instrumentista Fluminense nos outorga vasta obra, cuja audição fará vibrar em afinação com a sensibilidade daquele que agora se encontra trilhando um caminho de novas e mais puras melodias.
Quando estive no Rio de Janeiro há nove anos, o Altamiro apresentava um programa de chôro numa emissora cultural junto com a sua filha, relembrava seus tempos de iniciante e falava dos instrumentos de percussão que ele também, tão bem executava e dizia que costumava ser exigente com os seus músicos, claro e não podia ser pra menos, afinal aqui vale a antítese do ditado: “o mau autor faz a obra torpe”. Era um programa onde o ouvinte podia sentir a aproximação daquele ser humano de grande bom-humor e rara sensibilidade. Eu me deliciava ouvindo valsas, choros das antigas, músicas do folclore português, criações de Patápio Silva e até adaptações de músicas eruditas para flauta e grupo popular. Seus discos eram vendidos numa banca de revista em Copacabana, onde um dia estive e comprei alguns dos seus históricos registros e tive a esperança de encontrá-lo por lá para abraçá-lo mas era um dia chuvoso e não tive o privilégio de ver ao vivo aquele que já era um mito para mim.
Assisti a uma apresentação do Roberto Carlos no Canecão no início da década de 1980, onde o Rei disse que pretendia continuar cantando sua “ detalhes” por pelo menos mais uns cem anos, e é natural que seja assim pois, essa é uma das mais belas que ele já gravou, mas sabe o que isso tem a ver com o Carrilho? Tem pelo menos a introdução o meio e o fim, logo tudo a ver. O início dessa canção tem como dianteira a brilhante flauta do virtuose e ele, esteve em um especial gravado para televisão em 1976 recebendo elogios retumbantes do rei. Este contava 35 de idade, enquanto o instrumentista estava com a mesma idade que hoje tenho eu, 51.
Sou fraco na pena e quisera ter maiores recursos espirituosos para falar daquele grande nome da música brasileira, mas cada um faz o que pode e não devo e nunca quero tentar parecer o que não sou. Enquanto atento escutador de música, e dotado de um mole coração para as coisas belas, fico por aqui rabiscando meus bemóis e apertando os sustenidos, tentando fazer escorrer alguma boa substancia dessas pedras do meu semi-árido acústico... mas de um coisa estou convicto: Altamiro me inspira e minhas preces hoje são dirigidas à Santa Cecília, para que pare por alguns instantes sua orquestra de anjos e receba com muita alegria o o nosso flautista amado, amém.
Russas, 16 de agosto de 2012, 09;45