Na enfermaria
“Se devíamos chorar quando os palhaços começam a folia
Se devíamos pinotear quando os músicos se põem a tocar
O tempo nada dirá, mas eu o preveni”
(Auden)
Ajeitei-me como pude, de melhor me confortar, e me virei para a parede branca. Já não me agonizo tanto com agulhas. O mirar o branco também não me desanima mais; o ouvir de choros, lamentos, o sentir de cheiros diversos de dor. Nada disso. O que de tempos anda a me angustiar em hospitais é sempre o lento e quase eterno gotejar do soro. Impaciento-me, por vezes. Por isso ajeitei-me com cuidado e me pus a admirar a parede branca. Há infinitas paredes brancas em minha memória. Altas, alvas demais. Tatuados, esses meus muros em neve, em névoa, por pedras e olhos e sonhos. Rabiscos que nem sei. Por vezes, limpei os olhos antes de me atrever a desafiá-las, como limpasse os pés antes de merecer verde que se me dispusesse ao chão de pedra que havia sempre sob meus pés. Esfreguei em mim o impuro de minhas mãos, apertei os olhos e só então imaginei um rosto ali, naquela parede branca. Quis desenhar esse rosto com a ponta dos dedos, como escrevesse uma poesia em face, numa tela viva; uma concreta poesia de olhos e tez macia e boca que me cantasse canção que fosse de me fazer dormir.
E eu já quase dormia, quando o homem do leito ao lado despertou.
Imenso, o homem. Em voz, em corpo, cabelos, dor. Em alma, pensei.
Quase monossilabicamente, mas com o rosto limpo, branco e com um sorriso notável, embora um pouco dissimulado, contou-me do que foram suas horas, suas esquinas, abandonos e descaminhos que o levaram até aquele leito de enfermaria, de lado meu.
Não sou inconfidente, caro leitor, não queira saber de mim o que se passou com aquele nobre homem. Digo apenas que o desânimo que me acometia naquele momento e a minha quase intolerância, com tudo e todos, foram, aos poucos, escorrendo de mim como a poesia escorria pela parede branca, buscando o chão, a porta, fugindo, se esquecendo de mim.
Eu não tinha direito de reclamar, de não gostar, de maldizer o que ou quem fosse. Não.
O homem que estava ao meu lado tivesse motivos, talvez, para desdenhar o que houvesse ainda de esperança e fé e humanidade e paredes brancas e leitos e agulhas e companheiros de quarto. Mas ele sorria. E não me parecia capaz de maldizer sequer a dor que talvez sentisse. Me contava coisas de fazer doer e sorria.
Deixou o quarto antes de mim, e, da maca, sorridente, agradeceu-me por nada, acenou-me e se foi.
Ficou, ali, um resto de canção, um sussurro de sorriso.
Virei-me pro canto e desenhei na parede branca um pedido de desculpas. Devem estar lá, ainda, gravadas, minhas maiúsculas desculpas. De pontas de dedos, derramadas. Adoeçam, amigos meus, preencham a ficha, aleguem um mal súbito e peçam o leito da esquerda. Limpem os olhos do comum, das cores comuns dos dias e pode ser que vejam. Talvez, com um pouco de sorte, possam ainda ouvir, sentir, um sussurro de sorriso, se é que isso possa mesmo existir.