O remédio e a lei.

Doutor Domingos era um advogado muito atuante na capital de determinado estado da federação. Gabava-se, em colóquios e até solilóquios, não tão agostinianos, de possuir amplo conhecimento a respeito das espécies normativas nacionais, sua hierarquia, datas de publicação das leis e prazos de vigência, o que somente um bom estudioso, como costumava referir e referir-se, poderia ter ciência.

Ao menor sinal de violação a uma pretensão, ou mesmo a um capricho, o cidadão aconchegava-se na confortável poltrona da sala de espera do Dr. Domingos, aguardando, com aquela sensação de quem vai entrar em contato com uma alta autoridade, um ser quase que celestial, ser chamado ao recinto sagrado, ao “gabinete” onde a figura do distinto advogado se encontrava.

Seguiam-se choros, lamentos, vitupérios e uma infinidade de manifestações por parte do pretenso cliente, algumas extremamente contundentes, outras com a amenidade de um suco de limão sem açúcar, o que é de se esperar daquele que se sente violado no seu patrimônio ou honra, muito embora algumas figuras que procuravam o famoso Doutor tivessem, mais do que qualquer outra coisa, a intenção de violar o patrimônio e honra alheios.

Mas ninguém superava o Doutor Domingos quando o assunto era dizer qual a lei, o artigo, o inciso e a alínea que socorria a pretensão do cliente, numa exibição de memória e de subsunção lógica formal do fato ao dispositivo legal que era de fazer tremer os pés de qualquer um, principalmente se levado em consideração que, juntamente com tamanha proeza cognitiva, o ouvinte era submetido ao trombetear de uma voz rouca, poderosa.

Infelizmente, numa bela manhã de domingo, por coincidência da vida, o Dr. Domingos foi internado no melhor e mais requintado hospital da cidade, muito embora esta honraria não fizesse parte de sua agenda. Sua voz, um dos mais importantes instrumentos de trabalho, quase que sumiu, exigindo-lhe esforço hercúleo para se fazer ouvir pelos interlocutores. O médico, ao ver o ilustre paciente, determinou a imediata realização de uma série interminável de exames que surpreendeu e, até mesmo, enraiveceu o velho conhecedor das leis.

Impaciente com a permanência naquele sofisticado depósito de corpos maculados e, sentindo-se devassado na sua intimidade, como se os aparelhos tecnológicos postos à disposição da medicina estivessem a descobrir seus mais inconfessáveis segredos, o Doutor Domingos, como uma lagartixa que ataca o pequeno inseto já há muito espreitado, na primeira oportunidade que teve, agarrou-se vigorosamente ao profissional que estava a cuidar de si com tanto carinho e atenção e perquiriu, imponentemente, por que não tinham, até aquele momento, aplicado-lhe algum medicamento.

O também Doutor, conhecido pelo nome de Elias, com olhar complacente, disse ao afobado paciente que primeiro, antes de ministrar qualquer droga, tinha o dever de investigar melhor a sua situação clínica e até psicológica, não sendo recomendável, com base em pura especulação, de forma açodada, receitar-lhe algum remédio. Ressaltou, ainda que com um toque de ironia, que a medicina cuida de um patrimônio incalculável e, caso errasse, não poderia voltar atrás, requerer a São Pedro, na via de um mandado de segurança, que a alma do ilustre operador do Direito retornasse ao seu antigo receptáculo.

Pouco tempo após, o velho Doutor Domingos, com o olhar baixo, uma secura na boca e um sentimento de vazio no peito, olhou pela janela do quarto e disse, baixinho, para si: _ O brasil está doente. Lacrimeja como um condenado à morte e eu, dia após dia, aplico o meu medicamento, a lei. Sem qualquer pudor, de imediato. Não enxergo mais do que o imediato. Nunca pensei em observar se o remédio que o legislador apresenta, que o tribunal indica, não está a matar, a longo prazo, a própria sociedade. O Brasil está doente e nunca estudei o seu corpo como um todo, sua história, sua política, sua sociedade. Simplesmente aplico o remédio da lei, da santa lei.