NO LIXO DO LIXO
“Tem certos dias em que eu penso em minha gente
e sinto assim todo o meu peito se apertar
Porque parece que acontece de repente
como um desejo de eu viver sem me notar”
(Chico Buarque)
Ele não possui documento algum. Sua memória é tudo que tem para dizer quem é, de onde veio ou mesmo os números exatos ou aproximados de sua idade. Luciano Anísio da Silva é apenas mais um catador de lixo de 40 e poucos anos que perambula pelas noites e madrugadas de nossa cidade escavacando possibilidades de ter o de comer no dia seguinte de uma forma íntegra e pacífica. Não tem vícios, a não ser a honestidade, essa virtude brasileiramente tão esquecida que seus pais lhe ensinaram quando ainda eram vivos. Sua cama é o Calçadão ali no centro, tão grande e fria quanto a desigualdade social deste país, tão pequena e incômoda quanto a mentalidade egocêntrica dos brasileiros e brasileiras que dormem aquecidos ninados pela falaciosa consciência limpa de estão mais do fazendo sua parte “para o nosso belo quadro social”, como diria Raul Seixas.
Luciano Anísio da Silva jamais estará em um daqueles charmosos outdoors que homenageiam cidadãos ilustres pela enorme e merecedora de todas as honras participação ativa para uma sociedade melhor. Luciano não... Ele não tem dinheiro para comprar grandes anunciantes e vender imagem de bom moço. Sua função é, digamos, menos limpa: ele remexe no lixo podre produzido em larga escala pelos humanos perfumados que se encontram em uma parte mais alta e privilegiada da pirâmide social, porque essa é a única oportunidade que o sistema lhe dá para sobreviver no relento das ruas sem roubar, assaltar e um dia ser indigentemente assassinado pela polícia em alguma troca de tiros para finalmente descansar em paz.
Mas, contrariando toda a lógica mais-que-perfeita das estruturas de poder de nossa sociedade pós-moderna, imagino o texto que seria publicado em um desses pedaços retangulares de venda de egos em beira de estrada, caso os nossos valores fossem entendidos pelo viés da decência, da educação, da solidariedade e da ética, e não comprados pelo valor das altas somas financeiras: “Parabéns, Luciano Anísio da Silva, cidadão honesto, trabalhador e honrado, que suportou todas as discriminações, que compreendeu calado todas as mesquinharias e engoliu em seco as cusparadas ácidas de nossa sociedade hipócrita sem jamais se revoltar, sem jamais se refugiar na marginalidade ou ingressar no mundo das drogas”.
Luciano, mais um brasileiro vítima da exclusão do seu próprio Brasil, mais um Silva que representa a maior família dessa terra-mãe-gentil: a família cuja renda é inferior ao vivível de maneira básica, porque sustenta o fardo de 500 anos de disparidade e carência nessa gangorra econômico-social que em meio a alguns surtos de memória, nos faz lembrar com alguma dor na consciência que ainda nos reste de nossa condição primária e eterna de povo colonizado.
Esse brasileiro calejado de pancadas talvez não pense na implicação social de sua condição humana, talvez não saiba que sua função no mudo vai além do simples ato de catar no lixo as partículas de sua sobrevivência. Luciano Anísio da Silva é o exemplo prático da máxima de ser brasileiro e não desistir nunca, por mais que as circunstâncias dia após dia convençam do contrário e a prova que Augusto de Campos poematizou concretamente há algumas décadas: de que há mais dignidade incrustada no lixo dos que extraem sua vida de lá e mais lixo no luxo das altas colunas sociais