MEMÓRIAS DA INFÂNCIA (VIII):
OBRIGADA, AVÓ, PELAS CEREJAS!
 


Ana Joaquina e António Ambrósio, meus avós maternos, sempre se orgulharam de ter uma casa farta, não de bens materiais, mas de calor humano. Sempre cheia de gente, aquela casa de grossas paredes de granito, grande, como convém a uma família numerosa, tinha suas portas sempre abertas e sua enorme mesa posta para familiares, amigos, vizinhos e, até mesmo, desconhecidos. As pessoas pobres das aldeias das redondezas sabiam onde podiam mitigar sua fome quando por ali andavam.

Naquele tempo não havia geladeiras, mas havia outros métodos para conservar os alimentos. Na salgadeira* sempre havia presunto (pernil de porco salgado e defumado) e outras carnes que ficavam da "matança do porco", conservadas durante vários meses em sal grosso. Torresmos e pedaços de gordura de porco  eram também guardados em potes, depois de derretidas. No sal, era também conservado o bacalhau, o "fiel amigo" que nunca podia faltar em cada casa portuguesa. Em tulhas* de azeite eram conservadas linguiças, salpicões*, paios, alheiras* e queijos secos, confecionados com leite de ovelha e de cabra. Em enormes potes de barro eram guardadas deliciosas azeitonas, numa mistura de água, sal e ervas aromáticas, durante pelo menos dois anos. Em recipientes cheios de vinagre, eram conservados legumes: cenouras, tomates, feijão em vagem, couve-flor, pepinos, pimentões e cebolas. Imersas em aguardente ou em calda de açúcar, eram conservados diversos tipos de frutas. Figos, ameixas, pêssegos e uvas, de tão doces, podiam ser conservados no seu próprio açúcar, depois de dissecados ao sol. Mel, nozes, amêndoas, avelãs, pinhões e castanhas eram também guardados em frascos de vidro durante vários meses ou mesmo anos. Com frutas eram também confeccionadas deliciosas compotas e geleias. Perdi a noção do número de vezes que a avó e eu fizemos marmelada, compota de cereja, ginja*, pêra, pêssego, maçã, tomate e abóbora.

Barris de vinho e de aguardente bagaceira, enormes vazilhas de azeite, centenas de quilos de batatas, castanhas e várias "tranças"* de cebolas e alhos eram guardados no piso inferior da casa (vulgarmente chamado de adega), geralmente uma área mais fresca e seca, propícia à conservação desses gêneros, por vários meses ou até anos.
Todas as semanas a avó Ana fazia, pelo menos, uma boa dúzia de pães que eram cuidadosamente guardados numa arca de madeira de carvalho, envolvidos por um
a toalha imaculadamente branca.
Havia alguns rebanhos de ovelhas e de cabras na aldeia. Quando os pastos estavam verdes e fartos e os animais produziam muito leite, os pastores ofereciam alguns cântaros* de leite à avó, em troca de alguns favores. Com esse leite ela fazia manteiga, coalhada, requeijão e deliciosos queijos. Alguns eram consumidos frescos, os restantes ficavam secando durante algumas semanas, envolvidos numa mistura de azeite e colorau* , para serem consumidos ao longo do ano.
No galinheiro que ficava no quinteiro
* anexo às traseiras da casa, nunca faltavam ovos, galinhas, patos e perus. Na coelheira*   havia coelhos durante todo o ano, e como eles se reproduziam! No cortelho* havia sempre uma parelha de porcos cuja carne alimentava a família durante o ano inteiro.

O avô António, os tios e os primos eram exímios caçadores e sempre que saíam para caçar traziam lebres, perdizes e outras espécies cinegéticas. Não raro, caçavam uma cabra selvagem, um javali, ou até mesmo uma raposa. Com sua carne a avó preparava assados e guisados que faziam as delícias de familiares, vizinhos e amigos. Jamais conheci cozinheira comparável à avó Ana, mas nunca consegui comer os seus guisados de raposa, que até o padre da paróquia gostava.
Sempre que o avô ia à pesca, trazia alguns cestos de barbos
* e barbiscos*. A avó, com toda a bondade que lhe era peculiar, distribuía tudo por todos que a rodeavam. Como era bom ver toda aquela partilha, amizade, camaradagem e boa vizinhança!
Quando ela fazia uma peixada, cheirava que regalava! O peixe, depois de bem limpo, era temperado e frito no azeite (meus avós sempre produziram seu próprio azeite de oliva). No mesmo azeite era preparado um molho de escabeche
* - como a avó dizia - com muita cebola, alho, ervas aromáticas e vinagre. Pura delícia aquele "peixe de escabeche" que se conservava durante cerca de uma semana, imerso no próprio molho no qual o peixe "curtia". Era pura delícia tudo que a avó cozinhava, com tanto carinho e amor! Sinto imensa saudade do tempo em que a família se reunia em volta da mesa, degustando os manjares que ela preparava.

Antes de casar com o avô, a avó Ana havia ficado viúva, muito jovem, com filhos pequenos. Ouvi contar aos mais velhos que seu primeiro marido havia sido morto numa noite de festa da padroeira da aldeia, Nossa Senhora dos Remédios. Alguns copos de vinho mal bebidos resultaram numa briga e ele, tentando defender alguém, foi vítima de duas facadas que lhe provocaram a morte por hemorragia, consequente da falta de assistência médica imediata. Naquele tempo, início dos anos 40, o país vivia sob o domínio da ditadura de Salazar. Algumas famílias viviam na mais completa pobreza, outras tinham apenas como base de subsistência a agricultura. Em termos de transportes e saúde, não havia a facilidade que agora há. Não havia táxis, não havia ambulâncias, não havia viaturas de polícia. Naquele tempo, por tudo que ouvi contar aos mais velhos, apenas duas ou três famílias de agricultores mais abastados possuíam carro. Meia dúzia de pessoas possuia moto. Quase toda a gente usava cavalo ou carroça, como meio de transporte. O trem passava apenas uma vez por dia. O hospital mais próximo ficava a 15 km de distância da aldeia, o que significava, no mínimo, duas boas horas de percurso.

O avô António também havia enviuvado, ficando com filhos menores ao seu cuidado. Tinha suas terras, com horta, vinhedos, olival e pomar. Era um exímio carpinteiro, fazia maravilhosos trabalhos em madeira, desde rodas de carro de boi e móveis, a casas. Tudo que lhe fosse encomendado, o avô fazia. Conheceu a avó Ana e com ela casou. Ambos levaram pela mão os filhos do primeiro casamento. Desse segundo matrimônio, nasceu a  minha mãe e, alguns anos depois, meu tio Tó (diminutivo de António). Ao contrário de meu pai, que é filho único, minha mãe teve a felicidade de conhecer seis irmãos. Juntos, enchiam aquela enorme casa de alegria e calor. Alguns morreram jovens, outros emigraram para o Brasil.

Os poucos móveis que decoravam a casa eram de madeira maciça, feitos pelo avô. A enorme cozinha era agradável pela sua simplicidade: a um canto, a lareira, onde tantos serões passei com os avós, conversando, contando histórias e brincando. Não raras vezes a saudade me traz a imagem da avó, nessa mesma lareira, fazendo marmelada num enorme caldeirão de cobre. Ali ficava, pacientemente, durante horas e horas, mexendo os pedaços de marmelo com  açúcar até alcançar o "ponto" necessário. Aquela marmelada depois
era guardada em taças, malgas*, ou pequenos potes e era conservava durante meses. Não eram usados corantes, conservantes, nem emulsionantes. A terra tudo dava, puro, e puro tudo era consumido. E do marmelo nada era perdido: seus caroços, sementes e cascas eram utilizados na confecção de deliciosas geleias. Sorrio de satisfação quando lembro que o caldeirão de cobre da marmelada coube em herança à minha mãe, que, orgulhosamente, gosta de  polir e exibir.
Sensivelmente a meio da enorme cozinha, existia uma grande mesa em madeira maciça, obra talhada pelas habilidosas mãos do avô. Em torno dessa mesa inúmeras vezes a família se reuniu: nos almoços das vindimas, nos almoços das "matanças", nos almoços da colheita da azeitona, no Natal, na passagem do ano, no Carnaval, Páscoa e muitas outras festas.


Quando alguém ficava doente, a avó tinha sempre uma receita caseira que curava as "maleitas"*. Nunca faltavam "ervas milagrosas" lá em casa. "Em todas as plantas há segredos", dizia a avó enquanto caminhávamos pelos campos cobertos de tufos de ervas e flores, e seu corpo cansado se curvava, e as mãos calejadas iam ripando* as perfumadas flores da carqueja*, da urze* e do alecrim. "Folhinhas tenrinhas e flores abertas, sãzinhas... Depois de fervidas e bem filtradas curam as maleitas do corpo e da alma. Servem para lavar, beber, bochechar, curam dores, aftas e outras doen­ças da boca. As flores desse hipericão* já estão mirradas, de nada nos servem. Ripa* aquelas, acolá! Inda precisarão de mais alguns dias para secar. Quando findarem as tuas férias poderás levá-las para a cidade e fazer chá*. A vesícula e o fígado da tua mãe bem que precisam! E para isso a flor da carqueja também é muito boa! Ah, e não te esqueças de colher meia dúzia de romãs: a sua casca faz um chá que alivia a soltura* e todos os desarranjos da tripa..." Era assim a avó, em seu saber de experiência feito, um poço sem fundo de sabedoria e cuidado para com os outros.

E assim, a sua farmácia caseira ia ficando completa. Incluía um sem-número de outras plantinhas milagrosas que ia colhendo ao longo do ano. "São plantinhas que fazem bem a tudo, mas é preciso saber escolher e saber colher. Depois é só secá-las e mantê-las bem guardadas em frascos ou saquinhos, prontas para quando houver uma ferida, uma tosse, uma febre ou uma gripe. Olha que o alecrim, o eucalipto e o tomilho* são milagrosos para a tosse e bronquite. Mas se estiveres com os arrepios da gripe, flor do sabugueiro, laranjas, limões, chazinhos de hortelã, cama e canjas de galinha haverão de curar-te. Chá de folha de oliveira é remédio santo para diabetes e pressão. Barba de milho e pé de cereja aliviam todos os males da bexiga e dos rins. E por falar em rins, o sal e o acúcar são os nossos piores inimigos. Erva-cidreira e hortelã acabam com as dores de estômago. Chá de flor de tília acalma e chama o sono. Banhos de malva, de casca de carvalho ou de erva-de-são-roberto desinflamam e cicatrizam. Quando as mulheres estão "naqueles dias", devem beber muito chá de sálvia*, pois alivia as cólicas. Quando pés e pernas estão doloridos e inchados, nada melhor que mergulhá-los numa infusão de loureiro. E nunca te esqueças que o sabugueiro é uma botica viva: da raiz às bagas, tudo se aproveita. Enquanto Deus, Nosso Senhor, quiser, colherei forzinhas…" - dizia, enquanto me abraçava e me oferecia um sorriso lindo e contagiante, que parecia apagar por momentos as suas rugas profundas causadas pelas dores da vida... E a cada palavra sua eu sentia que tinha ainda tanto para aprender, dos homens, da vida e do mundo...! 

Meus pais, minha irmã e eu, morávamos numa cidade muito próxima da aldeia onde os avós viviam. Era uma linda tarde de domingo, aquela em que meus pais me levaram para visitar os avós. Não sei ao certo qual era o mês, mas devia ser em maio ou junho, pois foi na época das cerejas - as cerejeiras atingem o auge da floração em finais de fevereiro e março, e em meio e junho ficam carregadas de deliciosas e aromáticas cerejas, vermelhas, negras e brancas. Chegámos ao cimo do povo, onde moravam os avós, e logo os avistámos, sentados na entrada do alpendre, aproveitando o frescor da sombra daquela tarde ensolarada. Nas aldeias era costume as pessoas, depois de uma sesta, sentarem-se na entrada de suas casas, quintais ou alpendres, disfrutando uma bela sombra e, entre amigos e vizinhos, pôr a conversa em dia.

Como sempre, o avô António fumava seu cigarro, seu único vício de várias dezenas de anos, e balanceava-se na  sua cadeira de encosto. Chegava a esquecer-se do cigarrinho, apagado e colado nos lábios. A avó, quando me viu, sorriu e correu em direção a casa, a fim de buscar um cesto cheio de vermelhas e carnudas cerejas que havia colhido para mim, naquela manhã. Entre o alpendre e a casa havia um grande quinteiro rodeado de parreiras que ostentavam enormes cachos de uvas. Em setembro estariam prontas para a colheita, por enquanto ainda estavam verdes, não fosse o mês de junho, em que os figos e as cerejas são os reis das frutas.  
Era belo o cesto de cerejas que a avó Ana, correndo, trazia nas mãos... Quase tão belo quanto seu sorriso de satisfação, ao ver-me... Foi triste e arrepiante o momento em que a vimos tropeçar e cair. Era fisicamente bem constituída, com cerca de um metro e setenta centímetros de altura e oitenta quilos, o que fez com que a queda fosse estrondosa. As cerejas espalharam-se pelo chão, mas ninguém quis saber delas. Nossos olhos estavam voltados para a avó que, no chão, contorcia-se com dores. Com muito cuidado, conseguimos erguê-la e transportá-la para o hospital mais próximo, onde precisou permanecer internada por vários dias. Tinha fraturado o quadril, o que, associado a diabetes, dificultou a recuperação.
Passado algum tempo, para nossa tristeza, o avô António fechou seus olhos para o mundo e a avó ficou morando conosco por mais dois anos que me pareceram demasiado curtos e rápidos.

Nunca esquecerei aquela tarde em que a avó caiu. Um sentimento estranho faz meu coração sentir-se apertado quando recordo a alegria com que me recebeu, seus olhinhos brilhantes, seu rostinho feliz, seu contentamento em querer oferecer-me aquelas lindas cerejas que havia colhido para mim, com suas próprias mãos… Como era bom vê-la, sempre com a alegria estampada no rosto, aquela alegria que só os puros de coração conseguem transmitir! O sorriso e o carinho dos meus avós é uma das melhores lembranças que guardo do jardim da infância.

Nunca mais a avó Ana colheu cerejas para mim. Nunca mais seus pés pisaram a terra do quinteiro, da horta, do olival ou do vinhedo. Nunca mais a avó viu sua cerejeira. Nunca mais as cerejas tiveram o mesmo sabor... E sempre que vejo cerejas, a memória desse dia se faz presente em mim, como hoje se fez...

As lembranças provam-nos que o passado não morre dentro de nós. À minha querida avó Ana e ao meu avô António dedico este texto. Por todo o carinho que sempre me dedicaram a tudo e a todos, bem hajam avós!
Onde quer que estejam, quero que saibam o quanto, pela vida fora, fui e sou grata, por todos os ensinamentos e valores que me transmitiram. Quero que saiba que os amo muito e que nunca os esquecerei.


Obrigada, avó, pelas cerejas!




 





 
Glossário:
Salgadeira -  recipiente de madeira, onde se salga e se conserva carne de porco durante vários meses em ótimas condições de higiene e preservação
Tulhas – recipientes, de barro ou metal, normalmente com a capacidade de 100 ou de 200 l onde era guardado azeite
Salpicão – embutido defumado, confeccionado com lombo de porco temperado com vinho, alho etc.
Alheira – embutido defumado à base de carnes de porco, aves, alho etc
Marmelada - compota de marmelo
Ginja - variedade de cereja muito acidulada, bastante apreciada em doce e em bebida, «ginjinha»
Trança de cebolas - trança feita com cordel e o caule seco de várias cebolas

Cântaro - vaso com asa, grande e bojudo, de barro ou ferro esmaltado, para líquidos
Colorau - pó vermelho que pode ser utilizado como condimento ou corante, de cor avermelhada e normalmente extraído do pimentão seco
Quinteiro – grande quintal murado
Coelheira – lugar onde vivem coelhos
Cortelho - curral onde vivem animais

Parelha – um par ou casal de animais

Barbo, barbisco, perca - espécies de peixes de água doce cuja carne é muito apreciada
Escabeche - tempero preparado com vinagre e condimentos vários, usado principalmente para peixe
Malga – tijela vidrada
Maleitas – doenças
Ripar - colher
Carqueja, urze, hipericão, tomilho, sálvia – plantas com propriedades medicinais. Nascem e crescem nos campos de Portugal
Tisana - medicamento aquoso, preparado com ervas
Soltura – de ventre; diarréia
«naqueles dias» - período menstrual
 

Ana Flor do Lácio
Ana Flor do Lácio
Enviado por Ana Flor do Lácio em 14/08/2012
Reeditado em 31/05/2020
Código do texto: T3829496
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