.:. Crônic’achatada .:.

.:.

A modernidade fez de mim um sedentário em movimento, apesar de conhecer o relativismo Newtoniano[1], as questões referenciais e seus aspectos físicos, humanos... Costumo me perguntar onde estaria o cerne da questão levantada pelo homem que colocou a língua para fora. Estaria nos cabelos assanhados do gênio[2]? A ficta descarga elétrica despejada sobre ele ao tocar um condutor energizado, eriçando-lhe os cabelos, entrou definitivamente para o imaginário popular, é fato, mas o que isso tem a ver com meu bucho saliente?

Sou funcionário público, amigo do halterofilista Selton... E, recentemente, tornei-me homem de negócios. Com o empreendedorismo veio o sedentarismo. Aventuras, mesmo, só na hora de degustar os exóticos e requintados pratos nos restaurantes luxuosos da Cidade de Priston – adoro o Tramps[3] das ostras, aconchegante restaurante situado num sobrado, à beira-mar.

Depois das extravagâncias alimentares, ao lado da esposa e filhas, normalmente sou levado para algum hospital. Motivo: desintoxicação. É comer qualquer marisco e transmutar-me em vergalhões avermelhados da inseparável urticária.

Aliado a isso, tenho viajado demais! E o contato com culinárias excêntricas, para meu singelo paladar, está me matando aos poucos. Nos últimos seis meses, já devo ter dado a volta ao mundo em 80 dias, sem cortar caminho!

Nas idas e vindas, as paisagens (estáticas?), todas elas, ricas em policromias que variam do cinza, das cinzas dos incêndios florestais, ao verde característico da robusta vegetação banhada pelas chuvas, contrastam com meu crescente e redondo bucho, nocauteado pelo tempo. Nas paisagens há beleza, leveza; no meu corpo, o peso do tempo.

A penugem me fugiu da cabeça... O noviço de outrora, tornou-se barrigudo e calvo, ou careca, ou pouca telha, ou aeroporto de moscas. Sei que existe uma golfada de nomes para essas coisas feias inventadas e reinventadas pelo homem, mas compartilho a mais nova alcunha para os carecas, grupo a que pertenço, repassada pelo amigo Edir Paixão, via e-mail: “que me absolva o futuro, mas meu pai é quase calvo – tem cabelos ondulados, um do lado e outro d’outro”.

O duro mesmo era ouvir da filha mais nova:

– Papai, como o senhor consegue ser – tão – magro e – tão – barrigudo?! – Ouvir isso era o fim da picada! – Eu comentava, angustiado, com o amigo Selton, sempre que trocávamos duas ou três palavras.

Meu diferencial, voltando ao tema careca, está no brilho da testa. Apesar de nunca ter recebido tratamento à base de lustra-móveis (juro!), meu trem de pouso, aliás, a pista onde os pneus se assentam, tem expressividade visual desconcertante. Nem a direção do movimento de plantas com elevada afinidade fototrópica[4] resiste à atração.

A pressa motivou-me ao estresse precoce, afetando-me a memória recente. Não mais conto a vida como a sucessão de intervalos anuais, mas em minutos. Para mim, o ocorrido no dia anterior tem o efeito dos jornais velhos – sei da existência, que se relacionou a algo aparentemente importante, mas esquecido está. O que não esqueço nunca é de sentar com os amigos, no bar do Seu Chico, e contar fatos curiosos, dando leves pinçadas, em preto e branco, de algumas das minhas estripulias. Esse hábito me renova as forças.

Uma dessas aventuras narrei exatamente no bar do Seu Chico, para os amigos Selton, Geraldo, Custódio, Iquinha e Marreiro. Os diálogos da viagem que fizemos, eu, minha esposa e a Zefinha, intercalados por comentários meus, foram mais ou menos assim:

– Olhem! É uma vaquinha, coitada! – Disse Zefinha, nossa carona.

“Dar carona tem a mesma consequência de convidar amigos para nos espiar jogando cartas. Quando estamos perdendo e os piruás[5] começam a falar, dando pitacos[6], tudo o que desejamos é que não estejam lá. Como não tem jeito, “para o que não há remédio remediado está”.”

– Continue, amigo! – Interpela Selton, ansioso.

Continuei:

– Ela se desgarrou da mãe. – Respondeu minha esposa, solícita.

– Vamos voltar e pegar a bichinha! – sugere Zefinha (uma moça velha, amiga da nossa família, ainda solteira).

– E o que faremos depois? Perguntamos onde ela mora e a deixamos em casa? – Respondi, sorrindo. – Eu parecia criança aprontando. O sorriso escapava-me pela boca, escorregadio.

– Nossa, como você é chato! A bichinha está perdida, não está vendo?

“A 100 km/h, ao olhar pelo retrovisor novamente, nenhum sinal havia da pobre quadrúpede órfã.”

“E a Zefinha, tentando impedir-me de socorrer uma desconhecida, é mole?” – Outro sorriso.

“Tomando como ponto de partida a velocidade, nossa ilustre carona, senhorita de trinta e cinco anos, era tão sensitiva e arguta[7] que conseguia identificar os passageiros dos carros ao cruzarem nosso caminho, embora estivéssemos a 100 km/h! Só no percurso de ida, por duas vezes, ela rompeu o silêncio da viagem, esbravejando”:

– Olhem aquele carro! É o da minha amiga Quirina, filha do Seu Jorge!

– Estamos a 100 km/h, moça! – comentei.

– E daí! Ela é a única na cidade que possui um Jeguesbur 2010!

– Estamos viajando! Existem milhares de Jeguesbur espalhados pelo mundo... – insisti. (Minha filha mais nova me informou que a Zefinha roncava alto demais durante o sono).

– Era ela, claro que era!

Custódio e Mareirro tentaram fuçar outras intervenções da Zefinha, mas recusei contar. Prossegui:

“Minutos depois, noutra cidadezinha, iniciou-se macia e agradável chuva. Minha esposa, atenta, percebeu bichinhos voando a cruzarem nosso caminho a todo instante e tascou o filantrópico comentário”:

– Interessante. Eles parecem voar em nossa direção. Ei, pare! Vi uma borboletinha. Ah, coitadinha! Ficou presa ao limpador do carro...

“Parei. E lá se foi minha amada mulher socorrer a borboletinha amarela. Colocou-a, delicadamente, junto ao limite externo da rodovia (borboleta é inseto?)”.

– A bichinha quebrou a asa e está com a perninha quebrada. (Borboleta tem perna? – pensei).

“Instantes depois, quase infinitamente melancólicos, a constatação”:

– Ela morreu! – Uma lágrima escorria pelo rosto da bondosa mulher.

“Viajamos alguns minutos no tom plúmbeo[8] característico da morte. A paisagem aparentava concerto com a tela celestial, brindando-nos com cinzento e pesado céu que nos acompanhava... (Em movimento?)”.

“O dia, na cidade para onde íamos, não foi dos melhores. Problemas. Desacertos. Ao anoitecer, por volta das 23 horas, retornamos. Lá estavam os mesmos bichinhos, agora iluminados pelos faróis dos carros, a nos perseguir”:

– Eles parecem mesmo voar aproveitando a direção do vento – reiterou minha esposa.

“Mulher é sensível demais! Eu lá tenho tempo para divagar sobre que direção os bichos tomam! Pior ainda, tarde da noite! Queria era chegar a minha casa”...

– Nossa! Eles ainda estão acordados a essa hora! – complementa nossa amiga, aparentemente assustada, lá do banco de trás. Lembram-se da Zefinha? Ela voltou com a gente. Eu achava que teríamos “mala” na ida, mas tive que conduzir a “mala” na volta. (Descobri – depois – que a Zefinha era sonâmbula).

– Você já tem é sorte! – Comenta meu amigo Iquinha. Depois, conte a viagem com a sogra azucrinando o tempo todo, por você não ter parado para comprar a tapioca lá do Zé das bruacas que a velha queria comer. Aquela foi demais!

– Estrague a festa não, Iquinha! O melhor vem agora – disse, prosseguindo. – Na curva do Preá, aquela onde o Preá virou o carro lembra, Geraldo? Exatamente na curva, minha esposa insiste na pendenga com os bichos. Tentando encerrar a choradeira, soltei essa: Aposto que os bichinhos, ao passarem por nós, também estão se perguntando: ‘Nossa, esse povo não dorme não!’ – A apóstrofe ao invés das aspas é para mostrar que voz de bicho é diferente de voz de gente.

– Nossa, digo eu! Como você é chato, homem de Deus!

“Preparei-me para responder. Seria grosseiro com as duas, principalmente com a acompanhante, mas outro acontecimento me fez agir como espectador. Noutra curva, enquanto descíamos um penhasco ao longo da estrada, um motoqueiro passa por nós. Difícil saber quem estava mais apressado. Zefinha (Ela tem mau hálito), lá do banco de trás, solta o comentário”:

– Vocês sentiram o bafo de cachaça?

– Realmente, que cheiro forte e horrível! – Comenta minha esposa, anuindo.

– Que que foi? Vocês querem que eu acredite que sentiram o bafo de cana, de pinga braba... E devo crer que o motoqueiro soltou esse cheiro ao passar por nós, é?

– Você não sentiu, homi?

– Não! Já sei. O cara, ao passar, levantou o capacete e deu uma golfada de cana justamente na cara de vocês! Olhou pras duas e soltou aquele arroto, numa baforada cheia de desaforo! Foi isso? Ainda bem que falta pouco para chegarmos... Sei não, viu!

– Nossa! Como você é chato, homem!

“Resolvi calar-me. E assim fiquei até abrir a porta do carro e convidar nossa terceira tripulante”:

– Chegamos. Desce!

“Na roda de amigos, ovacionado pelos ouvintes, o final da narrativa me encheu de alegria. Selton, o bombadão da vila, para não perder a viagem nem o possível aluno da academia, pergunta”:

– Ei, camarada, quando você vai mesmo começar a malhar?

– Sei lá, macho! Preciso mesmo é de férias. Mande uma dose para mim, Seu Chico, que agora me deu foi uma raiva das boas! – respondi, acariciando, levemente, o bucho.

Juazeiro do Norte-CE, 14 de dezembro de 2011. 21h47min.

[1] De acordo com este princípio, referenciais inerciais são identificados pela propriedade de que compartilham as mesmas e mais simples Leis da Física. Em termos práticos, esta equivalência de referenciais inerciais significa que cientistas dentro de uma caixa movendo-se uniformemente não podem determinar sua velocidade absoluta por nenhum experimento (de outra maneira as diferenças possibilitariam determinar um sistema de referência absoluto).

[2] O texto faz referência ao físico teórico alemão radicado nos Estados Unidos, Albert Einstein. 100 físicos renomados o elegeram, em 2009, o mais memorável físico de todos os tempos. É conhecido por desenvolver a teoria da relatividade. Recebeu o Nobel de Física de 1921, pela correta explicação do efeito fotoelétrico; no entanto, o prêmio só foi anunciado em 1922. Seu trabalho teórico possibilitou o desenvolvimento da energia atômica, apesar de não prever tal possibilidade.

[3] Este termo, que literalmente significa vagabundo, caracteriza um serviço em que o navio é oferecido para transportar qualquer tipo de carga em qualquer parte do mundo. Os tramps seriam uma espécie de mercenários do mar.

[4] Fototropismo: Movimento de crescimento de plantas, orientado sob a influência da luz: o caule tem fototropismo positivo. (Sin.: heliotropismo.)

[5] É o milho de pipoca que se recusa a estourar. No texto, significa o penetra que se recusa ir embora, “agourando” o jogador que está perdendo. Pipoca e Piruá são palavras indígenas, da extinta Língua Tupi. Pipoca significa pele estourada e Piruá significa pele levantada.

[6] Palpites, opiniões.

[7] De espírito vivo, penetrante, capaz de perceber com rapidez as coisas mais sutis. Afinado, canoro: voz arguta...

[8] De chumbo. Cor de chumbo.

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 13/08/2012
Código do texto: T3827901
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.