.:.A pescaria e o avião.:.
.:.
– A pescaria foi boa?
– Foi nada, mulher! Nem piabinha a gente pegou...
– Pensei que tivesse sido ótima! Você pescou até roupa nova, não foi?
Lazarelli, o marido, apesar do enorme bucho que impressionava barriga afora, tenta passar em revista as próprias vestes.
– É que...
– É que faz dois dias que você saiu de casa para pescar, de sandálias de dedo, sóbrio; e me chega agora, embriagado, cheirando a perfume de boteco, sem os benditos peixes!
– É que...
– Onde deixou sua bermuda? Que calça coladinha é essa que você arrumou, homem de Deus? Onde diabos e com quem você pegou isso para vestir? E esse cheiro horrível de peixe morto...
– É que...
– É que é uma ova!
“Isso é que é mulher!” – Pensa Lazarelli, aparentando alívio.
Imediatamente, liga para o parceiro de pescaria e esbraveja:
– Ei, coligado! Tem como você vir deixar as ovas dos peixes aqui em casa agora? É que a mulher está uma fera comigo.
.:. #.:. Ni .:. # .:.
Na noite anterior, Lazarelli e o parceiro estiveram num dos botecos mais badalados de uma cidadezinha próxima à capital. Reencontraram o cantador Leleco, sumido das redondezas do lugarejo desde a época do recrutamento de Lazarelli, na década anterior àquela noite de seresta. Fizeram as saudações de praxe, colocaram parte do papo em dia...
– Amiguinho, tem uma galega nova na cidade pior que garçom: serve a todo mundo.
– Quem é, coligado?
Quando ia responder: “Agora, senhoras e senhores, temos a satisfação de convidar nosso prestimoso amigo Leleco para nos brindar com o som da sua voz. Leleco, por favor, cante para nós, ilustríssimo e inoxidável amigo! Estamos com saudade de ouvir o seu gogó em ação” – anuncia o apresentador do evento.
– Mostro quem é durante o show. Fique ligado nas dicas! – disse Leleco, saindo.
O cantador sobe ao palco, agradece os elogios e inicia a seresta, regada a muito saudosismo: memorável para os de mais idade e descoberta para os mais jovens.
– Isso que é música, coligado! – Comenta Lazarelli, seduzido, também, pelas doses de cachaça tomadas a mais.
– É sim! – Reforça o parceiro de pescaria de Lazarelli. – A mocidade precisa ouvir essas músicas.
O público se regozijava a cada interpretação. Empolgado, Leleco anuncia a próxima música:
– E essa aqui vai pro cornão daquela mesa ali! – Ele fala e, corajosamente, aponta.
Incontinenti, o seu Azevedo, dono da ótica mais famosa da cidade e desposado com a galega exageradamente linda para ser vista apenas pelos olhares míopes do comentadíssimo e solidário empreendedor, levanta-se e parte, serelepe e fagueiro, buscando a direção do cantador. Leleco, antecipando-se, posiciona o violão e o lança, num único golpe, sobre a cabeça esgalhada do pretenso agressor. O instrumento se esfacela. Os presentes entram em polvorosa. Lazarelli e o amigo não cabem em si de tanto riso.
A galega, aproximando-se do marido, esbraveja:
– Deixe de besteira, seu frouxo! Você só serve para dar vexame!
– Estava só defendendo você, meu amor! E ainda fica contra mim?
– Vamos embora, seu...
.:. #.:. Ni .:. # .:.
– Acorde, homem! Até dormindo esse homem é exagerado. Para que essa risarada toda?
– É que eu estava sonhando...
– Sei. Sonhando com a pescaria, aposto!
– Errou, mulher. Era com o avião.
“Aquilo é que é mulher!” – Pensa Lazarelli, angustiado; vira-se de lado e busca, sem sucesso, tirar da cabeça o avião “descoberto” depois da pescaria.
Crato-CE, 2 de agosto de 2011. 11h23min.
Quando finda o amor, o respeito se traveste de agressões; a confiança transmuta-se, gerando sua outra face e se tornando a sentinela da intempestividade; surgem, aqui e ali, fantasiadas de insegurança, medo e intolerância, fantasmas inexistentes no mundo real, mas ferozes aos olhares dos contendedores. As palavras ficam pesadas, possuindo o condão de ferir, machucando o íntimo já maltratado por pequenos outros descuidos cometidos pelos agentes do olvidado amor.