.:. O caso Lazarelli .:.
.:.
As crônicas, não fossem as vivências de seus criadores, talvez estivessem mortas! Entretanto, sobreviveriam sem as inter-relações humanas trocadas no dia a dia das nossas sofridas e, por vezes, felizes vidas? O que seriam das crônicas sem o tempero da vida real, sem as confissões gratuitas e pagãs, livres das celibatárias vestes e rituais dos confessionários? Se desprovidas de valor espiritual, pelo menos seduzem os espíritos afeitos ao ato do sorriso farto, sem comedimento.
A saga do Soldado Lazarelli se delonga no tempo e os fatos do causo a seguir são narrados por Nappan, um dos amigos de Lazarelli. A liberdade do exagero hiperbólico que a literatura permite preservará, quiçá[1], a identidade do protagonista. Dados da pendenga familiar: “Desabafante” – Soldado Lazarelli. “Desabafador” – Sargento Rithos. Conciliador – o tempo. Julgador: você.
A agonia se perpetua... No expediente da manhã, bem cedinho, com o dia ainda cheirando igual aos pães quentes da padaria do Seu Mundico, o soldado se aproxima do superior hierárquico e diz:
– Sargento, o bicho tá pegando lá em casa!
– Que aconteceu, rapaz?
– A mulher me flagrou namorando na internet e foi mãozada para todo lado! Tentei argumentar, mas não teve jeito. Eita mulher braba da peste, coligado!
O sargento tenta manter a compostura. O soldado prossegue:
– O pior, Sargento, foi quando à noite, na frente das crianças, ela chegou, com um trecho impresso nas mãos, de meu bate-papo com a coligada, e disse:
– “Olhe o bicho véi, sabe nem cantar!” – E continuou: – “Meu bebezinho, eu gosto de tu “mais” é muito”! Isso lá é coisa que se diga para cantar uma mulher!
Foi ouvir a narrativa e cair na gargalhada.
– Poxa, Sargento! A gente vem desabafar e o senhor tira é onda!
O superior tenta contornar a gafe:
– Depois desses contratempos conjugais, o encanto e a confiança certamente ficarão comprometidos, mas tem como reverter a situação. Tenha paciência. Foram palavras escritas e nada mais.
– Eu sou frouxo, Sargento! Se ela me apertar eu conto tudo – interrompe o soldado.
– Que erro primário, combatente! Os manuais são taxativos em casos como esse. Está lá, em relevo, na página 37 do Manual: réu confesso, jamais! Pelo menos até agora é tudo especulação. Tenha paciência.
– Valeu, chefe. Vou para casa então. Posso sair mais cedo hoje? Meu restinho de juízo está zunindo.
– Sem problema. Vá e descanse. Tente esfriar a cabeça e os ânimos.
A normalidade prevaleceu por longo período, mas, em novembro do ano passado, decorridos exatos dez meses de sofrimento, Lazarelli pede novo particular e desabafa, sem preliminares:
– Sargento, fiz besteira de novo!
– Que foi dessa vez?
– A mulher está pegando demais no pé, Sargento, e ontem eu assumi o caso!
– Você é louco, camarada! Ser réu confesso só complica...
O sargento tenta repreendê-lo, mas é interrompido:
– Deu não, Sargento! Abri o jogo. Ela perturbou tanto que assumi. Disse que eu e a dita cuja, “a gente está se gostando”. A mulher é tão dum jeito que só foi eu assumir, sabe o que ela disse?
– Fale!
– “A gente está se gostando, é! Passe para dentro de casa, seu véi abestalhado e safado! Trate logo é de cuidar dos seus filhos! Com um bucho desses e se danando! Pensa que ainda é brotinho, é? Não tem dado assistência nem em casa...”. Dá para entender mulher, Sargento? Elas brigam, brigam. Ficam enchendo, mas não aceitam quando assumimos os erros! Quando falamos a verdade, elas esvaziam o bico e murcham todinhas; quando a gente mente, pegam ar!
– Pelo menos você está em paz com sua consciência.
Passaram-se os dias. Dezembro chegou. Natal, época de festividades, de reverências ao Cristo vivo...
No quartel, dois dias depois do Natal, lá vem o Lazarelli com carinha de quem fez bobagem. Para variar, o sargento serviria de confidente para os novos relatos. Com a aproximação, Rithos se antecipou:
– O que foi dessa vez, Lazarelli?
– Tem jeito mais não, Sargento! A mulher me colocou para fora de casa.
– Logo no Natal!
– Foi sim! Dei uma tevê de 32 polegadas para ela, todo feliz! Pensei que fosse gostar, mas sabe o que ela fez? Perguntou: “E para a outra, você deu um televisor também?” Ah, Sargento, saí do sério e disse que para a outra eu tinha dado uma tevê menorzinha, de 14 polegadas. Pense na mãozada que levei!
– Você e sua esposa são pavio curto demais!
– Cansei de levar porrada, Sargento! Tem alojamento vazio para me hospedar? Vou me arranchar[2] hoje pro almoço, posso?
– Sem problema, claro que pode! Afinal, o quartel ainda é a casa dos desalojados.
– Fresque[3] não, Sargento! – respondeu Lazarelli, já se dirigindo ao rancho do quartel.
Os dias se passaram. Os ânimos arrefeceram... Até Lazarelli, o genuíno militar, desabafar, no corpo-da-guarda[4], durante a preleção com a tropa de serviço:
– Eita negócio complicado é casamento!
Os curiosos, sem perderem tempo:
– Algum problema, Lazarelli?
– Ontem, ao chegar a casa depois do expediente, fui chamado pela mulher. A Dona Encrenca ligou o computador e me mostrou a comunidade criada por ela num site de relacionamento. Adivinhem qual o nome da comunidade que a mulher criou e fez questão de me mostrar, exigindo que eu enviasse o link para a coligada lá?
– Diga! – foi a resposta dos presentes.
– “Pensa que é bonito ser escovão[5]?”. Isso lá é nome de comunidade? – Comenta o soldado sem se dar conta da satisfação estampada no rosto dos colegas.
No quartel, garante Nappan, todos foram devidamente informados. E a orientação dada foi: divulguem entre os amigos!
“Missão dada é missão cumprida”: a comunidade está sendo divulgada mundo afora...
Juazeiro do Norte-CE, 22 de fevereiro de 2011. 08h56min.
Do livro "Crochê de palavras"
[1] Talvez, quem sabe.
[2] Convidar para tomar parte numa refeição. Hospedar-se.
[3] Frescar: regionalismo que significa brincar, caçoar.
[4] Entrada dos quartéis.
[5] Forma peculiar e carinhosa de como os militares tratam algumas mulheres.