Sexagenário
Sempre fui fumante convicto e inveterado. Acordava e já acendia logo o pequeno cilindro branco, que tem uma fumaça admirável para os que fazem uso, e detestável para o outro time.
Minha mulher, por vezes, acordava antes de mim e eu tinha um delicioso café já preparado, que enchia a casa com seu perfume e aumentava minha vontade de tirar umas boas baforadas. Caso eu acordasse antes, sabia e sei fazer um café bem gostoso. Como dizem, modéstia à parte.
Mas bem perto da minha casa existe até hoje uma padaria que descobri ter um café simplesmente delicioso. Muitas manhãs, quando acordava, para lá me dirigia devidamente armado com meu maço de cigarros e isqueiro.
Lembro-me até os dias atuais da frequência. Homens de todos os tipos, desde os mais humildes operários, que invariavelmente tomavam meio copo de cachaça, destes copos comuns, para ficar determinada a quantidade ingererida acompanhada do delicioso café, xícara grande, e meia bisnaga de pão francês com mortadela. Outros como eu e um homem magro, franzino, risonho e com ares matreiros, aguardavam o ritual do preparo do café. Enquanto isto fumávamos, naturalmente.
O rapaz que preparava o dito cujo café seguia um ritual perfeito. Qual nada de pó moído! Grãos eram retirados de um grande saco, colocados na máquina de moer e devidamente triturados finamente. Só este fato já perfumava o quarteirão, acho. A água já estava fervendo, e o saco de flanela recebia a quantidade certa do pó maravilhoso. Em seguida, com uma longa colher de pau, o produto que se encontrava no coador era mexido com cautela e carinho. Isto posto, era colocado na máquina, e aguardávamos ficar pronto.
Não é preciso descrever as faces de quem observavam o ritual. A do rapaz magro parecia estar vendo alguma coisa descida dos céus, e creio que esta era a cara de todos nós.
O café era maravilhoso, eu tomava sempre duas xícaras pequenas, e atacava os pulmões com dois ou três cigarros. O tipo franzino que estou me referindo fazia a mesma coisa.
Com o passar do tempo, conversávamos alegremente, desfrutando daquele prazer matutino, e muitas vezes o dia ainda não estava totalmente claro. Observei que todos se conheciam, e eu já fazia parte do grupo, sendo que sempre o meu companheiro de conversa era o mesmo magro e simpático frequentador.
Certo dia, perguntei ao dono do lugar quem era aquele tipo. Ele se espantou e disse que era um escritor conhecido, com o semblante orgulhoso em ter o mesmo por freguês de muito tempo. Disse-me o nome e levei um susto, não esperava a resposta.
- É o doutor José Cândido de Carvalho, não o conhece? Fala com ele todos os dias e não sabe quem é? – foram as palavras do homem.
No dia seguinte, dirigi-me ao acadêmico famoso com respeito. Pedi desculpas em não ter reconhecido o autor do “O Coronel e o Lobisomem”. Zé não se incomodou nem um pouco, e achou graça. Disse que não era artista de televisão nem político, eu não tinha que pedir desculpa nenhuma.
Assim passaram-se alguns anos, até que um dia ele me falou que havia gostado muito do meu pai, fato que me surpreendeu, sem dúvida. Explicou-me que tinha um companheiro em outro lugar, onde também tomava café e incendiava os pulmões. Ambos haviam-se tornado amigos.
José Cândido escrevia num jornal de Niterói, “O Fluminense”. Descobri um recorte do jornal, datado de 15 de fevereiro de 1985, uma sexta-feira.
A coluna chamava-se “Recado”. Sob o título de “Ser chamado de sexagenário, nunca!”, vinha na íntegra o recado.
“Jorge Sader, fluminense de cultura e talento, tão conhecido em Niterói como a Pedra do Índio ou a Igreja de São Lourenço, tem os seus caprichos. Por exemplo: nunca vai ao Rio de Janeiro. E diz de maneira altamente espirituosa os motivos desta não ida:
- Não vou para não dar oportunidade de ver noticiado que o sexagenário Jorge Sader foi atropelado na Praça 15 com um embrulho de empadas debaixo do braço. Ser sexagenário já não faz graça para ninguém rir, ainda mais desmoralizantemente esfrangalhado por um ônibus da linha Padre Miguel - Largo do Boticário. “
Não fumo há anos, meu pai não morreu atropelado e, pelo que sei, Zé Cândido não morreu por causa do cigarro.
Deus os guarde.
Sempre fui fumante convicto e inveterado. Acordava e já acendia logo o pequeno cilindro branco, que tem uma fumaça admirável para os que fazem uso, e detestável para o outro time.
Minha mulher, por vezes, acordava antes de mim e eu tinha um delicioso café já preparado, que enchia a casa com seu perfume e aumentava minha vontade de tirar umas boas baforadas. Caso eu acordasse antes, sabia e sei fazer um café bem gostoso. Como dizem, modéstia à parte.
Mas bem perto da minha casa existe até hoje uma padaria que descobri ter um café simplesmente delicioso. Muitas manhãs, quando acordava, para lá me dirigia devidamente armado com meu maço de cigarros e isqueiro.
Lembro-me até os dias atuais da frequência. Homens de todos os tipos, desde os mais humildes operários, que invariavelmente tomavam meio copo de cachaça, destes copos comuns, para ficar determinada a quantidade ingererida acompanhada do delicioso café, xícara grande, e meia bisnaga de pão francês com mortadela. Outros como eu e um homem magro, franzino, risonho e com ares matreiros, aguardavam o ritual do preparo do café. Enquanto isto fumávamos, naturalmente.
O rapaz que preparava o dito cujo café seguia um ritual perfeito. Qual nada de pó moído! Grãos eram retirados de um grande saco, colocados na máquina de moer e devidamente triturados finamente. Só este fato já perfumava o quarteirão, acho. A água já estava fervendo, e o saco de flanela recebia a quantidade certa do pó maravilhoso. Em seguida, com uma longa colher de pau, o produto que se encontrava no coador era mexido com cautela e carinho. Isto posto, era colocado na máquina, e aguardávamos ficar pronto.
Não é preciso descrever as faces de quem observavam o ritual. A do rapaz magro parecia estar vendo alguma coisa descida dos céus, e creio que esta era a cara de todos nós.
O café era maravilhoso, eu tomava sempre duas xícaras pequenas, e atacava os pulmões com dois ou três cigarros. O tipo franzino que estou me referindo fazia a mesma coisa.
Com o passar do tempo, conversávamos alegremente, desfrutando daquele prazer matutino, e muitas vezes o dia ainda não estava totalmente claro. Observei que todos se conheciam, e eu já fazia parte do grupo, sendo que sempre o meu companheiro de conversa era o mesmo magro e simpático frequentador.
Certo dia, perguntei ao dono do lugar quem era aquele tipo. Ele se espantou e disse que era um escritor conhecido, com o semblante orgulhoso em ter o mesmo por freguês de muito tempo. Disse-me o nome e levei um susto, não esperava a resposta.
- É o doutor José Cândido de Carvalho, não o conhece? Fala com ele todos os dias e não sabe quem é? – foram as palavras do homem.
No dia seguinte, dirigi-me ao acadêmico famoso com respeito. Pedi desculpas em não ter reconhecido o autor do “O Coronel e o Lobisomem”. Zé não se incomodou nem um pouco, e achou graça. Disse que não era artista de televisão nem político, eu não tinha que pedir desculpa nenhuma.
Assim passaram-se alguns anos, até que um dia ele me falou que havia gostado muito do meu pai, fato que me surpreendeu, sem dúvida. Explicou-me que tinha um companheiro em outro lugar, onde também tomava café e incendiava os pulmões. Ambos haviam-se tornado amigos.
José Cândido escrevia num jornal de Niterói, “O Fluminense”. Descobri um recorte do jornal, datado de 15 de fevereiro de 1985, uma sexta-feira.
A coluna chamava-se “Recado”. Sob o título de “Ser chamado de sexagenário, nunca!”, vinha na íntegra o recado.
“Jorge Sader, fluminense de cultura e talento, tão conhecido em Niterói como a Pedra do Índio ou a Igreja de São Lourenço, tem os seus caprichos. Por exemplo: nunca vai ao Rio de Janeiro. E diz de maneira altamente espirituosa os motivos desta não ida:
- Não vou para não dar oportunidade de ver noticiado que o sexagenário Jorge Sader foi atropelado na Praça 15 com um embrulho de empadas debaixo do braço. Ser sexagenário já não faz graça para ninguém rir, ainda mais desmoralizantemente esfrangalhado por um ônibus da linha Padre Miguel - Largo do Boticário. “
Não fumo há anos, meu pai não morreu atropelado e, pelo que sei, Zé Cândido não morreu por causa do cigarro.
Deus os guarde.