ENCONTRO MARCADO COM A MORTE

ENCONTRO MARCADO COM A MORTE

Era dia de Nossa Senhora da Glória, 15 de agosto de 1998. Após o almoço, convidei minha esposa para juntos irmos ao Sítio Escravo Delfino, de propriedade de seus irmãos. Ela chamou para ir conosco, sua irmã Annita e seguimos no nosso fusquinha verde 1996.

A propriedade ficava lá pelos lados de Torreões, após o “Rancho,s Bar” uns dez quilômetros. Há tempos o sítio era da família e estava já um pouco abandonado, dado as dificuldades de acesso e desinteresse de alguns, após o falecimento de Dª Maria, minha sogra, a Vó Maria, queridíssima de todos nós.

Mas, era somente ter uma folga e um carro disponível, que algum dos filhos ou netos iam para lá, passar momentos de descanso e relaxamento, dado a beleza do lugar.

Pela manhã, principalmente no inverno, era como se sentir em outros países europeus. A serração fechada embranquecia toda a paisagem, cobrindo até a mata defronte a casa. Aos poucos, por volta de dez horas, se dissipava a névoa e a vista que se descortinava era de estontear. Acolá, bem longe, se avistava o grande paredão de pedra em Paraibuna – RJ, além de diversos morros, que verdes pela manhã, mudavam de cor à tardinha, tornando-se azuis.

O por do sol era mágico. A paisagem se transformava a cada segundo, dada a mudança da tonalidade do céu, que no outono parecia despejar ouro em pó sobre tudo, amarelando e emoldurando o quadro que a natureza pintara para aqueles que, embevecidos, na varanda da casa, nem respiravam, com medo de atrapalhar o canto da passarinhada que se despedia de mais um dia.

Durante o dia, se podia fazer de tudo um pouco. Ora passear até a porteira, cerca de um quilometro, na estrada ladeada por altos eucaliptos, apreciando a vegetação e o pomar, além de um pequeno açude meio arrombado perto da entrada, ora ir até o açude verdadeiramente dito, de cerca de 50 metros por 15 em forma irregular, de águas cristalinas e frias, onde fartas pescarias fizemos por inúmeras vezes e em companhia de outras tantas pessoas. Eram acarás e traíras, principalmente, além dos pequeninos lambaris, que teimavam em roubar as iscas, sempre.

Era para lá que nos dirigíamos naquela tarde fatídica, alegremente, sem saber ainda a sorte que nos esperava.

Lá chegando, já avistamos ao longe, perto da casa, que construída no alto, dominava toda a propriedade, um carro. Bom, pensamos, outros já chegaram antes de nós, teremos companhia. Lá chegando, constatamos que Elisabeth, a outra irmã de Graça, minha esposa e Marcos, filho de Annita, lá pernoitara com sua nova família, já que se casara há pouco tempo e ainda estava praticamente em lua de mel, apesar de já ser pai de duas lindas meninas.

Pois bem, alegremente, como sempre, Marcos e sua nova esposa, Seuil e um casal de filhos dela, uma menina e um menino de mais ou menos seis anos, Douglas, além da cadelinha deles, que chamaremos de Laika, nos recebeu de braços abertos, sorridentes.

Já haviam feito um churrasco e almoçado, mas a mesa ainda estava posta. Comemos alguma coisa e conversamos. Estava muito bom ali. Marcos ainda gracejava com sua mãe, dizendo que ela sempre ia atrás dele. Não o deixava sossegado um só instante. Annita nem ligava para isso, pois amava esse filho, apesar das constantes rusgas entre ambos, quase sempre por ser Marcos, um “filho pródigo”.

Estávamos na varanda descansando, quando Marcos me disse:

Tio Vicente, vamos pescar? Falei com o Douglas que já pescamos muito juntos e o senhor sempre pescava mais que eu, especialmente no açude, onde tem muitas traíras. Vamos lá?

Minha resposta foi com ação. Peguei uma enxada e uma latinha e seguido pelo menino Douglas, fui arrancar minhocas atrás do curral, enquanto Marcos preparava as varas e anzóis.

Em minutos, os três se punham a caminho do açude, que ficava logo ao pé do morro defronte a casa, mas, para chegar até os pontos melhores de pescaria, devíamos contorná-lo dando uma grande volta.

E lá íamos nós. Na frente, Douglas, olhos azuis, cabelos louros e branquinho, ia saltitante, acompanhado pela cadelinha e logo em seguida Marcos e eu, que conversávamos animadamente, “mexendo” com Douglas, um menino de apartamento, que descalço quase caia quando pisava em paus e pedras, mas ia em frente.

Era uma tarde perfeita. As mulheres ficaram na casa cuidando de tudo e tagarelando.

Chegamos à beira do açude e sem mais nem menos, a cadelinha Laika atirou-se na água, nadando graciosamente até a outra margem, cerca de quinze metros. Caímos na gargalhada e Douglas era o mais surpreso. Como poderia acontecer aquilo? A cadelinha sempre vivera trancada em casa, nunca vira um açude! Como era possível, chegar, pular e nadar tão facilmente?

Do outro lado do açude, descendo o barranco, estavam chegando Seuil e sua filha, com uma grande corda na mão. Essa grossa corda, de cerca de dezessete metros eu a havia trazido para o sítio, após usá-la na perfuração de um poço em minha casa. Como não tinha mais serventia em casa, no sítio sempre há.

A cadelinha ainda se sacudiu, molhando as duas, que tentavam segurá-la, o que aumentava mais as risadas de Douglas e Marcos, principalmente.

Percebi, que somente eu estava levando a pescaria a sério, já que para Marcos e Douglas era tudo uma festa. O menino jogava a linha com o anzol na água e em segundos a retirava e Marcos brincava com ele chamando sua atenção. Sua vara estava fincada na margem, armada e ele não estava nem aí para os lambaris que roubavam sua isca.

Seuil, sentada na outra margem, ficava gritando e acenando, chamando Marcos de “meu gato” e outros adjetivos carinhosos.

MARCOS, então me falou: - Tio, vou atravessar a nado, até à outra margem, ao que eu respondi: - Tudo bem, vai, sei que você é bom nadador.

Tirando a camisa e chinelos, Marcos, só de bermudas entrou na água até na cintura e ficou parado: - Tio, a água está muito fria! Eu respondi: - Claro é água de mina e ela sempre foi fria.

Marcos continuou: - Mas, no fundo tem muitos paus e barro! Ao passo que eu falei: - Marcos, você vai nadar por cima da água, não interessa o que tem em baixo.

Falava isso não sabia porque, visto que desde menino, lá no sítio do pai dele, em Sobragi eu testemunhara por muitas vezes ele e seu irmão Júlio com colegas, mergulharem nas águas barrentas do Rio Paraibuna e nadando corredeira abaixo chegarem a uma ilha no meio do rio. Era ele um exímio nadador, ao passo que eu sempre fora como um “martelo sem cabo”.

Seuil, chamava do outro lado: - Vem, gato, faça como a Laika, venha nadando cachorrinho!

Marcos, sorridente disse: Eu vou mesmo, gata, me espera aí. Mergulhou e realmente começou nadando estilo cachorrinho. Era uma festa só. Douglas parara de pescar e chegara perto de mim, rindo muito. Do outro lado, Seuil incentivava mais: - Vem, meu gato, vem meu gato.

No meio do açude, Marcos mudou o estilo de nado e passou a nadar de peito, já que o cachorrinho cansara. Mais algumas braçadas e a margem oposta seria alcançada;

MAS, ENTÃO, A FATALIDADE CHEGOU.

Marcos parou e ficou inerte, a dois metros do barranco onde Seuil e a filha o aguardava. Estando na margem de onde ele saíra, somente via suas costas um pouco abaixo dos ombros. Fiquei apreensivo. Não sabia o que estava acontecendo. Uma pessoa não podia ficar tanto tempo assim parada flutuando na água. Sabia que ali não dava pé. Então Marcos tentou virar-se. Pensei, ele descansou um pouco e vai nadar até a margem, mas, ele afundou.

Seuil ainda o chamava: Vem, meu gato, não brinca assim não, vem!

Eu já estava ficando desesperado com a demora dele voltar e gritei com todos meus pulmões: - Joga a corda, joga a corda. Seuil, com a corda na mão, sem ação, viu Marcos emergir e afundar em seguida. Aí, um desespero maior tomou conta de mim. Pensei comigo mesmo, naquela agonia: - Se ele não retornar em dez segundos, é o fim. Contei até dez e nada. Seuil, jogou a corda que ficou flutuando no lugar onde Marcos afundara.

Instantaneamente, peguei a mão de Douglas e comecei a correr contornando o açude. As botas que usava eram de número maior e me machucava quando corria, mas, nem senti dor e corria e corria. Douglas soltou-se de minha mão e correu à frente. Foi uma eternidade chegar até as proximidades da casa. Seuil já subira o morro gritando e chamando as três irmãs que ficaram na casa.

Annita, a mãe de Marcos, veio correndo ao meu encontro e pelo seu rosto notei que ela já havia sentido a fatalidade. Segurou nos meus ombros e disse-me: - Agora não temos mais nada a fazer, senão sair daqui e ir avisar os irmãos dele e o Anderson, bombeiro militar, marido da Jussara. Me leva no Fusca e tentaremos telefonar, no caminho.

Do jeito que estava, manobrei o carro e saímos, após falar com Dacinha, minha esposa para ficar ali e tentar acalmar os ânimos.

O fusquinha voava por sobre os buracos da estrada de terra e eu nem via passar os pontos de referência, como o Sítio do Geraldo Marcelo e outros, até o Rancho,s Bar onde saí do carro e tentei me comunicar via telefone, mas, sem sucesso, enquanto Annita falava com a esposa de Zé Marcelo sobre o acontecido.

Continuamos a viagem até a estrada, onde paramos no Curral, um restaurante, onde pedimos uma ficha para telefonar, já que nem eu nem ela havíamos trazido nenhum centavo nem documentos. Conseguimos falar com Júlio e sua mãe pediu para ele se preparar para voltar com ela ao Sítio.

No caminho, dirigindo o carro, eu chorava convulsivamente e as lágrimas quase não me deixavam ver a estrada. Annita me deu uma sacudidela e me chamou à realidade: - Você não pode continuar assim. Preciso de Você para dirigir o carro; fica sossegado, você não teve culpa, afinal nem sabe nadar e se soubesse, nada poderia fazer. Ninguém teve culpa, o que tinha de acontecer aconteceu, não estava em nossas mãos alterar nada do que se sucedeu.

Aí, respirei fundo e fundo pisei no acelerador do fusca. Em pouco tempo (que nem senti passar) chegamos no bairro Manoel Honório, que era onde morava a família de Annita. Ela desceu, entrou em casa, deu uns telefonemas e voltou com Júlio. Entraram no carro e voltamos voando, para o sítio, que distava cerca de trinta quilômetros dali.

Lá chegando, Annita juntou-se às irmãs, Seuil e filhos, todos em pânico, olhos vermelhos de tanto chorar. Sentei-me, tirei as botas de sete léguas, que me maltratavam os pés e calcei o tênis. Mal tive tempo de descansar e já uma guarnição do Corpo de Bombeiros chegava. Imediatamente, Anderson, o genro de Annita, também bombeiro, guiou seus colegas até à beira do açude, onde me convocaram para informar onde Marcos afundara. Indiquei o ponto e Anderson mergulhou, não sem antes reclamar da fria água. Em segundos voltou à tona, chamando mais dois colegas que mergulhando em conjunto trouxeram o corpo sem vida do rapaz. Pediram a corda, amarraram no tórax, nas axilas e amarraram a outra ponta da corda numa árvore ribeirinha. Reclamamos com eles, a razão de não retirarem completamente Marcos da água, ao passo que explicaram que era norma de serviço. Tinham de aguardar a perícia e uma caixa de aço, para retirarem o corpo. Eram já 18:30 horas. Marcos havia desaparecido na água por volta de 15:00 horas. Os militares permaneceram conosco, aguardando a perícia.

Com receio de que a equipe da polícia civil não encontrasse o caminho do sítio, voltamos, Dacinha e eu, no fusquinha, até o trevo da BR 040 e lá permanecemos, na escuridão e friagem, por mais de duas horas. Passava das 21:00 horas, quando a viatura do perito, acionada pelos bombeiros e Tio Maurício (ex-policial), apareceu. Guiamos os policiais pelas trilhas da região, até o sítio. Lá chegando, foram logo chamando a atenção do Sargento que comandava os bombeiros, o porque não retirara ainda o corpo da água, visto que tudo indicava se tratar de um acidente lamentável e não um crime. O Sargento engoliu em seco e disse cumprir normas. Na escuridão, à luz de velas, descemos até o local, onde puxaram o corpo pela corda e o levaram até a estrada, num piso de pedras, onde deixaram o corpo encarangado, no chão. O perito fez seu boletim de ocorrência, os bombeiros o seu e foram embora, não sem antes acionarem o rabecão. Deveríamos ainda aguardar a remoção do corpo na caixa de aço.

Voltamos até o posto de espera na saída da BR-040, comboiamos o rabecão até ao sítio, onde Júlio, o irmão, permanecera sentado ao lado do corpo inanimado de Marcos desde sua retirada dágua até àquela hora, já por volta de 22:00 horas.

Nessas alturas, Annita já voltara com Anderson, levando Seuil e seu casal de filhos, ficando lá somente Elisabeth e Júlio, além de nós.

Uma vez dentro da caixa de aço, o corpo de Marcos, Júlio embarcou na viatura fúnebre e voltou à cidade e nós levamos Elisabeth conosco, fechando a casa.

Marcos, que antes, levava vida atribulada com sua companheira Rita e duas filhas, nos últimos quatro meses, vivia nova vida, com muitos planos, ao lado de Seuil, com quem se casara e estava em lua de mel.

Aquele fim de semana feliz, no sítio, em companhia das pessoas as quais amava e era amado, foi sua despedida desta vida. Aos 33 anos e com a profissão de motorista de ônibus urbano, estava enfim dando um rumo à sua vida, mas, não sabia que tinha um encontro marcado com a morte, naquele feriado de Assunção de Nossa Senhora, do ano de 1998.

Por mim, nunca vira a morte tão de perto, sem ter condições de fazer nada para ajudar. Fiquei muito abalado e chocado. Enfim, cerca de três ou quatro meses depois, retornei ao sítio, com Dacinha e Elisabeth, busquei a corda fatídica, que servira para retirar terra de meu poço e mais tarde amarrar o corpo de Marcos à árvore, que estava guardada num dos cômodos da casa, até às pedras, onde o corpo de Marcos repousara à espera do rabecão, enrolei a dita, embebi em álcool e acendendo um fósforo a queimei completamente. Enquanto queimava, rezamos juntos pelo descanso eterno do espírito do sobrinho tão querido. As cinzas foram dispersas pelo vento e nós voltamos para casa mais tranqüilos.

Que descanse em paz, “sobrinho emprestado”, que ao seu modo levou a vida, deixando a vida lhe levar.