Monólogo de Morto Congelado

Existem notícias, que nos motivam a refletir sobre os atos e fatos, nelas contidos.

Deu na TV que, filha tendo conhecimento sobre técnica de conservação de corpo morto, por meio de congelamento, recorreu a esse serviço, com a esperança de que o corpo morto, no caso, de seu pai, pudesse com o desenvolvimento da tecnologia, reviver.

Então, surgiu-me a primeira indagação: o que aquele ser, cuja morte física o deixara impossibilitado de viver os prazeres e dores da carne, estaria pensando sobre o congelamento de seu corpo.

Irrompe a resposta, de certo especulativa, na forma de monólogo daquele, cujo corpo a filha congelara.

Vendo meu corpo congelado imagino-me múmia contemporânea. Pois, em mais de 3000 anos passados, os egípcios desenvolveram um processo artificial de preservar corpos humanos e de animais da natural decomposição após a morte.

Aliás, esse processo de preservação por congelamento, ao qual meu corpo foi submetido, é cópia de processo natural, visto que não são raros os exemplos de corpos muito antigos descobertos em regiões geladas, sem qualquer indício de decomposição.

Minha filha, provavelmente, deve estar pensando como alguns menos informados egípcios, que o desenvolvimento tecnológico operará o milagre de impor ao espírito, do qual ainda sou veículo, após a total dissolução desse mesmo veículo que, na ocasião do reencarne desse espírito, o faça nesse mesmo corpo, preservado por congelamento.

Se ao menos tivesse entendido o que tentei explicar-lhe. Se existe um objeto, é porque existe um observador. Lógico, cristalino, que observador e objeto não se confundem. Não podem ser a mesma coisa.

Assim, se percebemos nosso corpo, quem sou eu? Não sei, mas certamente, não sou esse corpo. Então, congelaram não a mim, onde a vida ainda pulsa, mas meu traje, que me permitia participar do baile da vida física e densa, sobre o salão onde dançam outros três reinos.

Continuando nessa simples diferenciação entre observador e objeto, quem sou eu se percebo minha ternura e alegria nas festas de boas-vindas aos recém-nascidos, bem como meu medo e agressividade ao ser ameaçado? Como percebo minhas emoções, sendo eu, de fato, o observador, não sou as emoções.

De mesma forma não sou meus pensamentos, pois os observo e os percebo. Ora, se o que sempre tive como sendo eu, aquela personalidade que pensa, se emociona, sente e se move, então, o que realmente sou é esse observador: consciência, alma, espírito, enfim o Eu Sou.

Certamente, esse espírito, caso retorne ao baile à fantasia no salão Terra, virá independente dos nossos apegos a essa festa maravilhosa e livre na escolha de sua nova fantasia.

Nem os egípcios conseguiram e nem tu, filha querida, poderás conservar essa fantasia de um baile, onde os músicos já guardaram seus instrumentos e retornaram para seus lares, e impor a quem Eu verdadeiramente Sou, fantasia usada, desbotada e inadequada, para nova decoração do salão, novas melodias, nova harmonia, enfim, nova era.

Se alguém inspirar-se pela força de meu pensamento e tentar registrar essa espécie de recado para ti, minha filha, deve fazê-lo titulando-o de Monólogo de Morto Congelado.

J Coelho
Enviado por J Coelho em 09/08/2012
Código do texto: T3822381
Classificação de conteúdo: seguro