Não olhe o passarinho

Vejo uma menininha, com parte do corpo miúdo encoberto pela água do mar, agarrada no meu pai. Percebo a emoção que transparece nos olhinhos negros e sou capaz de ouvir o seu pensamento falando para as ondas: “Nenhuma de vocês conseguirá me derrubar, porque meu pai está me segurando.”

A imagem deve ter sido captada por algum fotógrafo profissional, daqueles que saíam batendo fotos pela praia com o pescoço envolto por dezenas de monóculos.

Para quem não faz a menor ideia do que seja; monóculo é uma espécie de minibinóculo de uma lente só, na qual você mira com um olho e enxerga, na outra extremidade, a imagem capturada ampliada e colorida.

Tempos atrás, catei todos os monóculos coloridos que a minha mãe guardava em sua caixa de fotografias e mandei revelar os minúsculos negativos que continham. Lembro-me, na época, de ter achado o máximo poder passar para porta-retratos aquelas imagens antigas. Sem imaginar que, anos depois, estaria digitalizando-as na minha própria casa.

Mas voltando à imagem da fotografia, hoje arquivada no meu computador, vejo um homem que reconheço como sendo meu pai, um garotinho que - com certeza- é meu primo e uma garotinha que sou eu, mas que olho como se não fosse. Isto sempre acontece quando vejo imagens nas quais estou presente, ainda que não sejam tão remotas como esta com meu pai.

Achei que poderia ser o efeito colateral de eu ser “anostálgica” (aquela que não tem nostalgia). Sempre fui de olhar para trás, fazer um breve aceno, esboçar um sorriso apressado e seguir em frente. Nunca senti saudade doída e agradeço aos céus por ter me privado de tal sensação, pois da convivência com nostálgicos sofredores aprendi o quanto é difícil suportar a dor de não poder voltar no tempo.

Muito antes de conhecer o livro “O Poder do Agora” de Eckhart Tolle, já conjugava a vida no presente, sem pretensão. Como se o tempo, o exímio varredor, nunca tivesse deixado um único cisco do passado para que eu ajuntasse. Jamais desejei voltar a uma época vivida. Tampouco ao show em que a Rita Lee, sozinha, sentada em um banquinho, me fez transcender todas as barreiras tridimensionais e eternizar a emoção daquela noite.

Claro que nunca esqueci, afinal não estamos tratando aqui de Mal de Alzheimer, e sim, de “Anostalgia” (também admito ser viciada em neologismos). Lembro - não posso dizer de todos, porque minha memória anda querendo a aposentadoria antes da hora - de boa parte dos acontecimentos da minha existência, mas, além do desejo de não querer voltar, sinto como se nunca estivesse estado lá.

Quanto mais tento compreender o que me causa esta reação (anomalia?), mais descubro que ela não se enquadra em nenhuma teoria da psicologia, biologia, metafísica ou física quântica. Unindo pesquisas e experimentações da “leigologia”, acabo acreditando naquilo prefiro crer. Na presença que vive em meu corpo, que sente por mim, pensa por mim, fala por mim, mas nunca aparece nas fotografias, porque a luz só consegue apanhar - entre o abrir e o fechar da lente - o que está materializado em seu campo de captação. O que não é o caso da alma.

Certamente minha alma estava com meu pai naquele dia, na praia do passado. Mas não ficou por lá, presa naquela fotografia. Pelo contrário, ela continua existindo nas sensações do que sou e faço hoje. Nos olhos ardidos pelo sumo da laranja que acabei de descascar; no beijo que dei no meu filho quando o deixei em frente ao colégio; em acordar e ter de lutar com a preguiça que não queria sair da cama.

Ainda que a minha mãe tente me convencer dizendo que eu amava aquele minúsculo maiô vermelho, é como se outra garotinha o vestisse e pousasse para foto, não eu.

Eu sou esta pessoa que está a escrever – nem no passado, nem no futuro - agora.

Capturar momentos e prendê-los em imagens é uma brincadeira que adoro, contudo, sei que é impossível salvar a emoção numa pasta, ainda que a nomeie: “A felicidade vive aqui para sempre.”

Assim, apesar de não mais me ver naquela fotografia, algo me diz que - mesmo morrendo de medo das ondas poderosas - eu tinha plena consciência da importância daquela presença masculina junto a mim, do calor da sua mão agarrada ao meu corpinho congelado, e da gigantesca felicidade que me envolvia e, sabiamente, sussurrava em meu ouvido: “Curta intensamente este instante, antes que ele se vá.”

Tanto, que quando o fotógrafo gritou: “OLHA O PASSARINHO!” Preferi continuar olhando para o meu pai.

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Léia Batista
Enviado por Léia Batista em 09/08/2012
Reeditado em 09/08/2012
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