.:. Acidente premiado .:.
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– Vida de polícia é dura demais! – Esse era o costumeiro joga-fora de um paisano frustrado que vivia tentando passar num concurso militar fazia uns dez anos. – Quando prende o bandido o povo reclama; se não prende, reclama também. Quando age com firmeza e rigor durante as ações – é ultrapassada, intransigente; se atua com cidadania, desrespeitam-na.
– Alto lá, camarada! Que estultícia é essa? A polícia tem é moral... Você já viu o que acontece numa blitz, quando a polícia chega num bar? Todo mundo fica em pé! É o policial pedir e o dono do boteco desliga o som. Os milicos entram de graça em clubes... – Manifesta-se o sargento Porfírio, nada contente com as palavras do civil.
– Alto lá o senhor também, chefe! – Intervém o cabo Gomes, guarda-vidas renomado do Corpo de Bombeiros, discordando do superior – Os milicos nada! Eu sou Bombeiro (militar), e já fui barrado várias vezes na entrada de clubes. Da última vez que isso me aconteceu eu reagi com firmeza. Quando meu amigo procurou por mim, deu de cara com o porteiro do clube agarrado ao portão de acesso. Eu segurava o desavisado pelas barbichas e gritava: “– Não vai me deixar entrar, não! Não vai me deixar entrar, não! Hein?”. Eu puxava era com força! Por pouco não arranco a barba do homem.
– O povo só lembra que Bombeiro é autoridade quando está no sufoco... Nessas horas vocês são os caras!
– Civil folgado você, sabia? – comenta o policial, olhando para o colega bombeiro.
– Também acho. Não sabe nada da vida de caserna e fica tirando onda.
– Calma! Estamos conversando. Não posso falar o que penso? Na realidade vocês são pessoas de sorte. Estão empregados. Trabalham sem se preocupar com o dia de amanhã. Isso não existe nas empresas privadas. Vocês têm estabilidade.
– Por falar em sorte, vou confidenciar o que fiz numa ocorrência. Envolve a questão da autoridade também.
– Veja lá o que você vai falar! Não se esqueça de que tem paisano aqui.
– Posso ou não posso contar, sargento?
– Conte isso de uma vez...
– Vamos aos fatos: estava de serviço como socorrista, turno C, à noite. O motorista da ambulância era o Cabo Praxedes. Por volta das vinte e duas horas, ocorrência: atropelamento. Um casal tinha sido atropelado por um automóvel no centro da cidade. Acionados, fomos com a devida brevidade. O condutor do veículo se evadiu sem prestar socorro às vítimas e encontramos os dois muito agitados – e uma multidão de curiosos. O casal discutia. Desci da viatura e os abordei, tentando aproximar-me para o início do atendimento. De repente, o rapaz solta o verbo:
– Sai fora, otário! Ninguém aqui precisa de nada não, tá ligado?
Tentei acalmar os ânimos, mas ele não entrou na minha e prosseguiu com as agressões verbais:
– Meu irmão, sai fora! Se você tocar em mim, eu meto um gigantesco processo em você, tá ligado?
Voltei para a ambulância e informei a situação ao Cabo Praxedes, que me entregou um modelo de declaração disponível nas viaturas para esses casos, e disse:
– Leve para ele assinar e vamos embora. Se não quer ser atendido, paciência.
Dirigi-me ao casal novamente, agora com o papel na mão:
– O senhor poderia assinar esse papel, informando que recusou o atendimento?
– Bicho, tu é Mané mermo! Quem é tu para me obrigar a assinar isso?
Voltei transtornado para a ambulância. Naquela hora deu vontade de ser policial... Quando retornei para a viatura, e o Cabo Praxedes me viu com a folha em branco, esbravejou:
– Você é um recruta muito do frouxo, incapaz de conseguir uma assinatura na droga de um papel! Vá lá e só volte com esse papel rubricado, nem que seja com um dedão marcado nele, entendeu?
Eu fui. Em menos de um minuto, com a folha assinada, entro na ambulância e falo:
– Vamos, chefe! Podemos voltar para o quartel.
O Cabo Praxedes, assustado, pergunta:
– O que você fez, recruta?
– Falei para ele, chefe, que os Bombeiros sorteavam todo final de mês um televisor, uma geladeira e uma bicicleta entre as pessoas acidentadas na cidade... Foi molinho, ele assinou sem ler.
– Recruta desenrolado. Gostei!
E voltamos para o quartel.
Dias depois, o dito cujo aparece no grupamento. É identificado na entrada do quartel, agradece o atendimento recebido, e pergunta o nome do sorteado do mês. A sentinela, alheia aos fatos, chamou o Fiscal de dia ... E o caso foi parar na sala do major comandante. Não captei todo o conteúdo do diálogo, mas ouvi muito bem quando o major falou que tudo não passava de engano. Ao sair da sala, o cidadão comentou com o comandante:
– Pode crer, comando! Devo ter fumado uma lombra muito doida, tá ligado?
E eu, amigos, também estava ligado, tá ligado?, e saí de mansinho.
Crato-CE, 23 de outubro de 2008. 01h15min.
(Do livro "Crochê de palavras")