Coroneis e Sinhazinhas

Trata-se de algo internalizado, instituído, latente, inscrito com fogo e tudo o mais de profundo e arraigado que se possa dizer. A que me refiro? Eu me refiro a esse sentido de dono, de posse, de comandante, de condutor, de proprietário, inclusive do pensamento, da alma, da respiração. E de quem falo? Qual o sujeito de tudo isto e mais ainda? O homem, o coronel, o chefe. Eu conheci uma tia de meu pai, Tia Mocinha (quase Sinhazinha, não?) que se dirigia ao marido chamando-o solenemente de senhor. O senhor vai tomar café? O senhor vai sair? O senhor precisa de algo? E, quem sabe, também teria passado pelo “Tire a roupa que vou lhe usar”. Linda, um rosto de boneca de porcelana. Tenho uma filha cuja fisionomia é a mesma da tia Mocinha. E não é que, mesmo vivendo nesta era avançada, tem a sorte de lhe aparecerem sempre os coronéis da modernidade? Tem horas que me dá mais gana que em Rita quando planeja vingar-se de Carminha. Tem outras horas em que pensamentos terríveis me acometem, mas não os direi aqui. Noto que muitos jovens veem as cenas da novela inspirada no romance de Jorge Amado, Gabriela, como se fossem quase um programa humorístico. Inclusive eu, que sempre fui mais para Malvina do que para tia Mocinha, me dano a rir revendo os coronéis das páginas de Jorge Amado, agora, pela segunda vez, na tela da televisão. A minha lei sempre foi e é outra, sou um coronel às avessas. Nunca desejei dominar namorados ou o marido, aliás, eu não gosto de dizer “este é meu marido/esposo”. Ele, filho de uma cidade de mentalidade machista, do interior sergipano, guarda um pouco dos costumes entre os quais foi criado. Então, todos os avisos foram devidamente dados: “em mim só Deus manda e se quiser mandar em algo, compre um navio e vá ser comandante”. Da minha parte, sou litorânea, sou o mar e se o comandante do navio é bravo, mas bravias são as minhas ondas. Claro que este é um texto literário e nele entram a força de expressão, a brincadeira e a linguagem figurada. Cumpre, porém, notar a sombra do coronel lá no fundinho do olhar. Vendo as cenas do capítulo de ontem, da novela Gabriela, observei que, há alguns anos, eu fiz aquela mesma pergunta da personagem de Jorge Amado: “E se fosse eu, seu Nassib, o senhor me mataria também, como o coronel Jesuíno matou dona Sinhazinha?”. Hum... sei... estou lendo o seu pensamento, querido leitor. Você quer saber a resposta. A resposta foi: Eu não mataria você, mataria ele. Que foi engraçado foi, mas que eu confiasse, de forma alguma, pois quem lá sabe do que vai na cabeça e no coração das pessoas. Realmente acredito que se dorme com um estranho e nunca se sabe o que esse estranho pode aprontar, sequer ele. O melhor é cuidar. Por falar destas coisas, estou escrevendo também para comentar as cenas da novela quando a Sinhazinha e o dentista foram liquidados pelo coronel Jesuíno. Antes quero dizer que eu fiquei numa torcida frenética no sentido de que dona Sinhazinha alcançasse aquilo que o marido lhe negou e concedeu às meninas do Bataclan: o êxtase amoroso. Que bom que deu tempo, toma coronel. Todo castigo pra você é pouco. José Wilker tem desempenhado a sua arte como sempre o fez, mais que magistralmente. Entretanto, cumpre salientar a excelência, o esplendor, a realidade que imprime ao seu personagem. Merece vários prêmios. Merece um Oscar. Quem sabe o fato de ser nordestino, ou de haver ainda convivido ou conhecido algum velho coronel e alguma Sinhazinha, tenha lhe conferido mais brilho na composição do personagem. Maitê Proença mostrou, além de belas pernas em meias pretas, um desempenho de deixar a gente apaixonada, em transe junto com ela. Mais bela que Inês, em seus profundos olhos de cor inigualável, jamais se viu tão sublime a morte. Ele, o dentista, também morreu bonito. Parecia querer explicar-se ao seu assassino. Morreu o dentista no gosto bom da mulher do coronel que nem a conheceu profundamente em suas feminilidades encantadoras. Ah, Sinhazinha, por que você e o seu dentista não fugiram daquele arremedo de homem que nem para amar prestava, mas sim, ótimo para matar?