O velho tempo
Ontem parei para pensar... mas pensar o quê? O viver está tão complicado que nem sei se vale a pena ficar meditando horas e horas, como tenho feito desde a noite passada.
Cheguei em casa por voltas das dezoito horas. A tarde estava morna, o trânsito infernal. As pessoas passavam por mim como se fossem baratas, ou melhor, gafanhotos no milharal em tempo de praga. Andavam como uma massa disforme. Seguiam sem propósito de um lado para outro da calçada como se o semáforo estivesse enlouquecido – vermelho-verde-amarelo-vermelho-verde.
A janela do meu quarto está aberta. É possível ver que o tempo passa lentamente. Na cama estou de cabeça ora para baixo, ora para cima... como uma ampulheta. Nisso, meus pensamentos vão ora para o céu, ora para o inferno.
Na parede que está logo à minha frente, um pernilongo espera para me atacar outra vez. Ele faz de conta que está morto, mas sabe que posso esmagá-lo a qualquer momento. Só ainda não executei esta desventura por pura preguiça. Não estou disposto a limpar a sujeira que vai causar. É evidente que o sangue espalhará no branco da parede. A barriga do maldito está uma bolha, pronta para estourar.
Não sei onde andam: minha mulher, meus filhos, meu caseiro e muito menos minha cadela que atende pelo nome de Mel. É de se imaginar que ela esteja no canil, só que a porta está quebrada há meses, isso sem levar em conta a sua desobediência canina.
De certa forma e por ironia deste momento, estou no submundo dos meus pensamentos; o que era virtual agora é real, aquilo que havia perdido em algum lugar distante, acabo de encontrar. Este renascer aparente é também um devaneio, deveríamos viver apenas os bons sonhos, aqueles que acariciam nosso ego e nossos desejos mais próximos.
Você certamente pensará que estou fora de mim, disso não tenho dúvida, mas sou capaz de amar alguém mais do que a mim mesmo. Sei que só os amigos conseguem penetrar no nosso mundo sem que, na verdade, saibamos que eles estão presentes em nós. Mas isso não impede que eu seja uma pessoa (in)justa comigo mesmo.
Olhando atentamente para a ampulheta, percebo que o tempo é uma máquina de fazer monstros. Meu rosto, antes liso e delicado, hoje é um mosaico. São tantos traços que nem sei mais como diferenciá-los. Meus cabelos, antes sedosos e negros, agora parecem ramos cobertos de neve. Os braços já não apresentam mais aquele vigor de tempos passados. Mas o que mais me entristece é ver que os meus olhos não envelheceram, não morreram, não apodreceram. Continuo vendo a beleza dos jovens; o caminhar cadenciado da mulata que me olha com ternura, mas lá no fundo de minha alma sinto que ela me diz: “coitado, na juventude certamente foi um bom moço”.
O tempo parece mesmo não ter piedade, tudo passa. Tudo se repete: menino correndo, tempo passando, velhice chegando... dia após dia morremos aos pedaços.